O Rio de Janeiro é uma cidade encantadora e tenebrosa.
Sempre trabalho com pesquisa, com indagações, com a busca de respostas relativas a um determinado saber. Trata-se de uma sensibilidade calcada na ingenuidade infantil mantida por mim e na minha curiosidade infinita pelo conhecimento, agora, na maturidade da vida, já incorporada ao caráter. Nada do que conheço foi construído sem indagações, investigações, pesquisa enfim.
Essa sensibilidade trilhou um caminho em minha vida. Incidentalmente fui convidado a participar de um bom número de pesquisas institucionais e conclui essa experiência como uma especialidade. Aprendi a técnica, a tecnologia, a ciência embutida nos questionários de pesquisas. Participei de minha primeira pesquisa aos dezesseis anos, nas hortas escolares de Jaquarepaguá. Depois, da pesquisa de Estágios em Engenharia na Região Sudeste do Brasil, da Firjan. Participei também como consultor da investigação Hábitos e Necessidades dos Usuários de Informação Técnico Científica, pesquisa essa, fundadora do IBICTIS, financiada pela CAPES. Trabalhei na formulação e execução da Avaliação dos Treinamentos técnicos do DNER, quando já dominava a técnica de montagem do quadro de variáveis, indicadores, graus, fontes, instrumentos, enfim, toda a traquitana tecnológica que define uma investigação. Uma entre as mais importantes das que planejei e executei foi a montagem do Primeiro Censo Demográfico e Sócio Econômico do Estado do Tocantins, realizado em 1990, quando o Censo do IBGE não foi executado por debates no congresso sobre invasão de privacidade, debate esse, importado dos Verdes na Alemanha da época. Fui consultor do planejamento, montagem, logística e execução do primeiro censo do Tocantins. Ufa. Ainda assim, depois fui convidado para trabalhar na pesquisa de Consciência Ecológica Brasileira, em 2008, subvencionada pela embaixada do Reino Unido no Brasil. Para finalizar formulei e coordenei a execução da pesquisa A Educação Infantil na Cidade do Rio de Janeiro.
Meus trabalhos autorais de ensaios, literatura, crônicas e artigos de conhecimento histórico e cultural resultam de pesquisas pessoais, com aquela ingenuidade juvenil.
Convocação e Treinamento.
Soube da convocação de recenseadores para o Censo Demográfico do IBGE através da mídia.
Censo esse atrasado em dois anos por conta de questões orçamentárias. Trata-se do Censo que deveria ter sido concluído em 2020. Em consequência da pandemia e de falta de recursos orçamentários foi relegado a 2022, mas, todo o material da pesquisa traz a logomarca do Censo 2020.
Tenho um tanto de tempo livre e esse trabalho não determina horários. Pode ser executado a qualquer tempo. Manhãs, tardes, noites, domingos, feriados e sábados, a qualquer hora. O único controle seria sobre produção e produtividade. Mesmo assim com bons prazos para conclusão.
Para um escritor malhado pela vida e curioso como uma criança me pareceu tentador, excitante, participar do processo. Além de tudo minha sanha de pesquisador foi incentivada pela ideia. Resolvi por pesquisar a pesquisa em seus intestinos.
Me inscrevi e aprovado logo pude observar falhas gerenciais críticas nas comunicações entre os aprovados e as coordenações do Censo com relação as convocações para o trabalho. Logo foi determinado um treinamento de uma semana em tempo integral, com ajuda de custo de 200,00 reais, numa dada universidade, que cedeu ou alugou suas salas para as atividades. Na segunda feira de início, as filas para entrar na universidade só foram resolvidas as dez e meia da manhã e perduraram desde as oito. Outra falha séria, a universidade tinha um protocolo de acesso que não foi respeitado ou não era do conhecimento do IBGE. Assim, os recenseadores engoliram duas horas e meia de confusões para poderem ter acesso as salas de aula dos treinamentos. Muito bafafá e rififi rolou durante a espera até que através de listas nominais cada recenseador pode entrar.
Os treinamentos pareciam desconhecer os princípios da Escola Nova e esquecer da existência de Paulo Freire. A instrutoria estava composta por outros recenseadores recém contratados e colocados como tutores de slides e vídeos que eram projetados diariamente sobre o processo e o uso dos equipamentos de coleta. Nem uma dinâmica de grupo foi realizada. Os aparelhos de coleta apresentaram falhas e os mapas são de complicada identificação tendo em vista o tamanho da tela de um celular e o sem número de legendas de interpretação dos setores. Um tablet seria o equipamento mais competente para facilitar a leitura dos mapas e suas legendas.
E, antes a tudo, o censo seria mais eficaz e barato com o preenchimento dos questionários através de convocação na Internet e por um longo período, permitindo a população o acesso com facilidade e com prazos largos. Assim deve ser no próximo Censo, que deve e tem que ser bem mais competente e inteligente do que esse. Setenta por cento dos questionários respondidos por internet e trinta por cento, onde se faça necessário por questões territoriais, a pesquisa presencial.
Não é possível que tecno-cientistas competentes não saibam reconhecer esse erro crasso. Um outro absurdo é a periodicidade de realização que parece ter sido determinada pelo Imperador há séculos. No decreto do primeiro censo ele determinava a periodicidade de dez anos para os próximos censos, não se sabe sobre qual princípio científico está assentado o prazo.
Ainda sobre os treinamentos, a ajuda de custo de duzentos reais não foi paga e durante a délivrance foi dito que seria paga em duas parcelas de cem reais ou que seria paga por ordem bancaria, já que um erro de sistema teria complicado as coisas. As contas bancárias dos recenseadores não tinham sido reconhecidas pelo sistema, ou outra desculpa, que acendeu em todos a chama do reconhecimento de corrupção, uma vez que pagamentos por ordem bancária a milhares de colaboradores podiam dar margem a inclusões ilegais num projeto que move mais de dois bilhões de reais.
Por conclusão, as convocações aos Postos de Coleta, também foi morosa, confusa. Os recenseadores esperaram uma semana, dez dias, quinze dias e até um mês para iniciar as atividades, receber os equipamentos e setores a pesquisar.
A Pesquisa de Campo.
A pesquisa de campo é orientada por Supervisores ou Coordenadores que delegam o mapa de um setor para cada recenseador. O mapa de setor compõe uma área geográfica urbana ou rural determinada por um conjunto de logradouros, habitações ou estabelecimentos comerciais, religiosos, educacionais e industriais. Uma quadra ou um quarteirão podem ser considerados um setor. Há setores que, por sua configuração arquitetônica não configuram quadras e não apresentam a simetria organizada das cidades. As partes frontais dos setores são consideradas como Faces dos setores. O recenseador deve então percorrer as faces do setor e realizar as entrevistas com apoio do DMC. Trata-se do Dispositivo Móvel de Coleta, um celular alimentado com o mapa das faces de cada setor e os endereços das habitações e estabelecimentos pesquisados desde o último censo realizado há dez anos passados. O DMC apresentou inúmeros erros para milhares de recenseadores. Além do DMC o pesquisador recebe também um mapa impresso do setor com uma interpretação conceitual sobre a área a ser pesquisada. No meu caso o Dispositivo definia uma região indígena nas franjas do Morro da Coroa, no Catumbi, centro do Rio de Janeiro.
É claro que não existem aldeamentos indígenas nessa região. Daí o título dessa crônica quase ensaio. Estou procurando até hoje a tribo do Catumbi.
Além desse erro absurdo, que está calcado nos erros cometidos há dez anos atrás pelo censo antecedente, haviam logradouros identificados como parte do setor, mas em áreas fora do setor apontado no mapa. O mapa definia toda a área fronteiriça a favela do Morro da Coroa como área indígena e esquecera de recensear pelo menos quinhentas pessoas em duas vilas que não estavam caracterizadas no mapa. Erro do recenseador de dez anos atrás. Essa é uma situação trágica para os resultados numéricos do Censo.
Vamos pegar o exemplo das vilas que não estavam identificadas no setor. São quinhentas pessoas. Vamos fazer um pequeno exercício. O Brasil tem por volta de 6.000 municípios. Se quinhentas pessoas foram esquecidas, por erro, em cada município brasileiro – 6.000 x 500 = 300.000 – trezentas mil pessoas ficaram fora das contas do número da população. O que nos leva a crer que o Censo Demográfico Brasileiro não tem credibilidade ou eficácia. Suas contas estão erradas sabe-se lá há quantos anos. Outra, não há reconhecimento das populações de rua, que por conta da crise gerada pela pandemia, aumentou muito desde 2020.
A leitura dos mapas na tela do celular é complicada, há legendas que não se consegue visualizar com clareza. Além do que, as informações sobre os logradouros nem sempre estão corretas. O recenseador passa a ser um novo mapeador dos setores habitacionais. O uso do tablete facilitaria em muito o processo. Os recenseadores deveriam trabalhar em duplas por setor.
Não há auxilio alimentação ou de transporte para os recenseadores.
O Conteúdo Conceitual.
As questões colocadas para conhecimento da situação da população estão apoiadas num conteúdo conceitual que reflete a vida no Brasil antes dos anos cinquenta. Imagine o governo federal lhe perguntar se você tem uma máquina de lavar roupas em casa. E se resume a máquina de lavar. Não se pergunta por televisores, computadores, acesso a internet. À qual variável econômica, cultural, comportamental estará vinculada não se sabe. Não. Não tenho. Mando para a lavanderia, contratei uma lavadeira – respondeu uma pesquisada.
A pesquisa é feita através de dois questionários. Sendo um o questionário básico, que é excessivamente resumido e pode ser respondido em 8 minutos. O outro é o questionário chamado de Amostra mais complexo e tão absurdo quanto o questionário básico. O questionário Amostra é incidental. Está programado para ser utilizado pelo DMC sem o conhecimento do recenseador. Incide em torno de 5% de cada setor pesquisado. É extenso e carregado de perguntas constrangedoras envolvendo a privacidade e a pessoalidade do entrevistado. Por vezes enfrentei recusa a continuação da entrevista por vexar o entrevistado – Não vou responder mais não moço – e porta na cara.
A incompetência em planejar parece característica dos governos no Brasil. As decisões parecem espasmódicas e sempre no ápice de alguma crise. Não estão apoiadas em conteúdos de planejamento.
O censo não se integra a dinâmica das mudanças sociais, culturais e comportamentais, nos conceitos da pesquisa. Então, no século 21, o censo considera apenas o sexo biológico na identificação da sexualidade da população. Mais grave, no caso de religião, se o entrevistado afirma ser evangélico, deve ser caracterizado como católico apostólico romano e assim são identificados no censo todos os que se identificaram como evangélicos. Ora. A Igreja Católica Apostólica Romana é a igreja de Roma. O catolicismo oficial. A igreja católica apostólica romana é uma empresa bem identificada e específica. As igrejas evangélicas são uma outra proposta de fé institucional. Mas talvez não tenham sido consideradas em razão de serem muitas e de muitos nomes e orientações, ou haveria um motivo político-ideológico. O mesmo se aplica ao reconhecimento de sexo ou de orientação sexual. Gostaria de comparar o questionário utilizado em 1950 ao de 2022 porque acredito que pouca ou nenhuma mudança foi feita desde setenta anos passados.
Vem cá – disse o entrevistado – o governo não sabe da miséria do povo – perguntou – não sabe como a gente vive. Não acredito. Moro aqui faz trinta anos e quase nada mudou nas condições de vida de quem mora aqui.
Os governos estaduais e os governos municipais capitais de unidades federadas e alguns municipais de cidades representativas realizam regularmente várias pesquisas sociais e econômicas. Muitos desses dados seriam úteis ao censo demográfico nacional. Aliás, o censo poderia ser descentralizado. Cada unidade da federação realizaria o seu. Diversos estados publicam anuários estatísticos com base nas informações que colhem em suas realidades. Mas existe uma outra questão. Os dados do Censo IBGE são os que determinam os repasses federais a Estados e Municípios, o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o FPM – Fundo de Participação dos Municípios estão determinados pelo resultado do Censo. Esses fundos justificam o volume de recursos a repassar pelo quantum das populações. Assim sendo, quanto menos gente menos recursos a repassar. Os Estados e Municípios mais populosos recebem a maior quantia de recursos. O indicador para determinar os repasses deveria estar apoiado em outras variáveis econômicas, sociais e ambientais conjugadas ao número de habitantes. E é sempre bom lembrar. O reduzido número da população beneficiará vários outros indicadores econômicos como o PIB, a renda per capita, e outros índices de medição do desempenho da economia. A renda per capita, o PIB, e vários outros índices econômicos estão condicionados pela demografia. Por isso mentiras podem ser pregadas por governantes. Não se entende até hoje. O crescimento da classe média verificada no governo do PT é absolutamente improvável.
As taxas de crescimento demográfico têm sido manipuladas não se sabe desde quando. A diminuição planejada dos cálculos da população melhora o PIB, a renda per capita e como já apresentamos, vários outros índices de desenvolvimento econômico.
A variável sobre fertilidade feminina se traduz em perguntas sensíveis e absurdas. Além do que, o IBGE considera a idade fértil como o fazem os índios. As comunidades indígenas consideram que uma menina que teve sua primeira menstruação está pronta para o casamento, está pronta para procriar. As perguntas podem ser feitas a meninas entre 10 e 12 anos de idade. E pior. O IBGE considera que uma criança de doze anos de idade está apta a responder a pesquisa. Quando lembro de minha segunda infância concluo que não teria a menor capacidade e a devida responsabilidade para responder à pesquisa.
Devemos considerar a cultura indígena, mas não podemos expandir sua lógica para toda a sociedade. Os questionários deveriam considerar o contexto cultural de cada região com perguntas diferenciadas e adequadas a cada realidade.
Não se sabe se é incompetência ou a preguiça atávica de Macunaíma.
A questão sobre nível de renda e salários ou ganhos financeiros desenha a maior mentira que a população pode fabricar. Tanto para mais renda como para menos. Esses dados já são conhecidos pela Receita Federal, assim como vários outros, já estão respondidos por organismos estaduais e municipais, tais como: fornecimento de energia elétrica, acesso a serviços de limpeza urbana, fornecimento de água e existência de sistemas de saneamento básico, esgotos, taxas de alfabetização, todas essas informações estão já recenseadas pelos governos estaduais e municipais. Então, não há cruzamento de dados e informações com as unidades federadas e outros setores do governo federal. Essa situação acende a desconfiança da população no governo que se surpreende com as perguntas interpretando nelas uma ação de controle e opressão.
Pois aí está o resultado do Censo IBGE 2022, quase seis mil recenseadores pediram demissão. Ninguém quer assumir um trabalho tão mal planejado e novos concursos para recenseador estão com editais abertos e poucos candidatos. O auxílio financeiro do treinamento ainda não foi pago a milhares de profissionais. O número de recusas da população ao Censo é histórico. O censo não reflete a realidade demográfica do Brasil, que hoje conta com aproximadamente de 280.000.000 a 300.000.000 de habitantes.
Esse é meu cálculo aproximado, tendo em vista todos os erros perpetrados, como o mapeamento de setores equivocado e o desconhecimento de inúmeros logradouros.
O censo deve ser descentralizado. Executado com cruzamento de dados estaduais e municipais e federais. Pelo menos 60% da população pode responder as entrevistas pela Internet, com prazo adequado. As questões de fertilidade devem ser balizadas com pesquisas científicas recentes, as entrevistas presenciais devem estar limitadas a regiões específicas por dificuldade de acesso, por padrões culturais e níveis de renda. Os recenseadores devem trabalhar em dupla e com o Tablet e não um celular mal programado. Deve haver auxílio alimentação e transporte para os recenseadores.
Ainda em termos conceituais, o censo deveria balizar suas variáveis a partir dos onze objetivos do milênio propostos pela ONU. Pelo pacto global ou pela Agenda 2030.
A questão racial é tida como piada pela população. Quando formulei por ene vezes a questão, a resposta que eu mais recebi foi – O que o senhor acha…. Eu retrucava – a senhora é que deve achar. O povo brasileiro é etnicamente mesclado. Não dá importância a essa questão. Nas favelas e bairros pobres todas as etnias convivem em relativa harmonia.
No mais, para concluir, o projeto do censo com parceria de dados com estados e municípios, Receita Federal e Ministério das Cidades, executado majoritariamente através de questionários on line, na Internet e presencialmente em regiões determinadas, sairia muito mais em conta e seria tecnicamente confiável. Dois bilhões para execução, denotam o hálito da corrupção.
Por outro lado, o processo pode contar com variáveis sobre comportamento e cultura. Pode também, em futuro próximo, agregar variáveis de interesse da iniciativa privada, como referências de hábitos de consumo e de relações sociais. Isso permitiria ao governo captar recursos financeiros para a execução do processo. Na Europa, os censos agregam essas variáveis e perguntas como: O senhor acredita na prova científica da redondeza da Terra, a senhora foi ao teatro e ao cinema quantas vezes esse ano. Teríamos assim uma medida do nível de conhecimento e de ignorância do povo.
O nível, não de ignorância, mas de incompetência do governo no Brasil nós já conhecemos. E é secular.
ALEXANDRE ACAMPORA
É escritor, documentarista e fotógrafo.
alexandreacampora@gmail.com