Sob o cricrilar dos grilos e o coaxar dos sapos que povoavam o matagal das proximidades, ela deixou o carro na esquina e caminhou os cerca de cinquenta metros pela rua esburacada depois de ver a luz que anunciava a porta aberta. O que era estranho. Nas reuniões, Josafá e Benê sempre se mostraram muito temerosos com a violência nas redondezas. Mas nunca é demais um cumprimento e um abraço apertado. Sobretudo, às vésperas das eleições. Voto é voto.
– Licença! – anunciou-se num grande sorriso, esticando o pescoço porta adentro, e disparou a falar: – Oi, gente! Estava passando pela vizinhança e não poderia ir embora sem um último abraço nos meus eleitores preferidos…
Josafá, Benê, os três filhos adolescentes e a sogra dele se amontoavam num sofá esfiapado e cadeiras descascadas.
– Joaninha? Que faz aqui horas dessas? – Josafá parecia nervoso, como pego em coisa errada.
– Como eu disse, estava passando e vi a porta aberta… Por falar nisso, perdeu o medo dos malas, seu Josafá? – Joaninha levou a mão à cintura num remelexo debochado, na tentativa de criar um clima mais receptivo.
– É que hoje é uma noite especial… Ai! – fez o do meio, Claudielson.
Benê, ao lado do moleque, remendou.
– É o calor… Menina, que noite quente, meu Deus…
– Ai! – também fez Josafá, após flagrante cotovelada. – É… é… é isso… Muito quente – confirmou, assoprando, sem jeito, o peito e chacoalhando a gola da camisa.
Dona Celeste, a sogra, de bochechas murchas que quase invadiam o queixo e grandes bolsas vazias sob os olhos, fixava o velho relógio na parede.
– Quase na hora – avisou.
– Na hora de quê, minha gente? – quis saber a candidata.
– Do remédio! – saiu-se Claudijefferson, o mais velho dos adolescentes.
Uníssonos e aparentemente aliviados, todos confirmaram que Dona Celeste se referia ao medicamento para a pressão.
– Que remédio? – intrometeu-se a velha. – Já tomei logo depois da janta…
– Mamãe anda muita esquecida – interrompeu Benê, num sorriso pálido.
– Vocês estão estranhos hoje, meus amigos! Credo! Eu, hein! Parecem pra baixo…
Joaninha, então, girou no meio da sala, tentando contagiar o eleitorado com sua simpatia nata.
– Domingo está aí e vocês terão uma vereadora amiga!
A vibração da alegre moça, contudo, parecia não reverberar naqueles semblantes tensos.
– Tá na hora – tornou a sogra sempre de olhar fixo no velho relógio.
Um carro parou do outro lado da rua e, num tropel, toda a família, menos Dona Celeste, precipitou-se até a janela, deixando Joaninha no centro da sala ruminando indagações. Numa mudez intrigante, as atenções se voltaram à visita ao vizinho da frente.
– Este é pra você, este é pra você, este é seu, este é seu e este é seu!
Muitos vivas atravessaram a rua e pegaram a família inerte à janela.
– Vocês vão ficar sem presente – alertou Dona Celeste, fazendo Josafá, Benê e os adolescentes voltarem a atenção para o problema no centro da sala.
Fulminada pelos olhares, Joaninha não entendia o que acontecia do outro lado da rua que tanto chamava a atenção da família. Mais: que a fazia sentir-se tão estranha num lar que a recebera com tanta alegria em pelo menos três reuniões ao longo da campanha e nas várias caminhadas pelo bairro periférico. Afinal, não era ela a candidata deles e eles seus eleitores?
– Joaninha – voltou-se, por fim, uma constrangida Benê. – Sabe de nossas condições, de toda a dureza, de nossa luta pra viver… E esta é a nossa noite…
– Não estou entendendo, Benê…
– Minha amiga, nos perdoe – também falou Josafá, encabulado, mas decidido. – É a noite que recebemos a visita. Precisamos que você vá embora, por favor. Nos entenda e nos perdoe mesmo, mas é importante para esses seus pobres amigos que você vá.
– Claro! – Joaninha levantou as mãos em sinal de capitulação e deu os primeiros passos em direção à porta.
– Não! – gritou toda a família, inclusive a sogra.
– Pelos fundos, pelo amor de Deus! – rogou Benê. – Vai com ela, meu filho – pediu a mãe a Claudinelson, o mais novo, que, rapidamente, tomou a candidata pela mão e a conduziu pela cozinha.
Joaninha deu a volta pelo quintal e, à penumbra, refez o percurso de cinquenta metros até seu carro. À porta do veículo pôde ver um homem de barba grande, cintura avolumada, camisa vermelha e gola branca, com uma grande sacola, atravessando a rua rumo à casa da qual ela acabara de sair. Muito sorridente, anunciava-se em tom de brincadeira:
– Ho! Ho! Ho! Feliz Natal antecipado!
O visitante foi recebido com muito entusiasmo e alegres vivas.
– Este é pra você, este é pra você, este é seu, este é seu, este é seu e este é seu!
CT, Palmas, 24 de dezembro de 2020.