À mesa de honra, já composta, a cadeira vazia. O hino nacional acabara de ser executado, com mãos solenemente ao peito e olhares reverenciais à bandeira do Brasil. O governador, num ar de segredo, ouvia o que o prefeito de Palmas cochichava ao seu ouvido; entediado, o deputado estadual rolava a tela do smartphone com o polegar; o jovial presidente da associação de municípios fazia cara de gente importante; o mestre de cerimônia, com voz cavernosa e afetação, anunciava as ilustres presenças que tomavam as primeiras filas; e os jornalistas, em pé nos corredores laterais, desejavam que aquela cerimônia fastidiosa chegasse logo ao fim.
Ao girar da maçaneta, o ambiente protocolar foi invadido, em rápidos segundos, pelo som caótico do mundo real e pela luz do dia que seguia indiferente lá fora. Um burburinho se alastrou pelo auditório até a frente do palco e o locutor calou a altiloquência gutural. Cabeças buscaram o que ocorria. Governador, prefeito, deputado e presidente da associação de municípios tentaram enxergar entre rostos difusos e os jornalistas despertaram da sonolência do evento maçante.
Olhares curiosos, pensamentos profusos, sussurros impróprios, risos maliciosos e acenos servis e refolhados. Em meio à tormenta, deslizou num pisar vagaroso e silente sobre o carpete azul-anil. Interrompeu o andar e cumprimentou, num crispar nervoso da mão e olhar fuzilante, o secretário de Estado que ouviu claramente dizer “sempre querendo parecer mais importante”. Deu um abraço melífluo na prefeita interiorana que aproveitou sua aproximação e agradeceu a emenda parlamentar para a creche que a cidade tanto clamava.
Atravessou o corredor em busca do ex-prefeito camuflado atrás das cabeças. Sumido desde a traição da última campanha eleitoral. Saudou o sorridente assessor de prefeitura na primeira cadeira, lançou um meigo olhar para o encorpado advogado ao lado e puxou num terno abraço o assustado infiel, que, sem reação, tremeu ao cicio: “Nos reencontraremos por aí”.
Retomou o desfile e, fitando o dirigente do órgão federal com gravidade, balançou por três vezes o indicador, exigindo satisfação. Fez a leitura labial: “O projeto foi concluído”. Devolveu um sorriso, que se encheu de malícia ao se deparar com a primeira-dama de Palmas, sempre incomodada com sua presença – emburrada, braços cruzados e indiferente ao frisson do auditório. Com um semblante espigaitado, dirigiu-se ao estranho à esquerda daquela mulher contrafeita. O desconhecido se pavoneou e retribuiu o cumprimento com um riso tolo, como se amigos de longa data. Insolente, ainda impôs o tronco sobre a ilustre senhora, que não disfarçou o aborrecimento, para estender a mão à cadeira ao lado, onde o hesitante chefe de gabinete do prefeito da Capital quedava numa palidez mórbida.
Sob flashes dos fotógrafos que se aproximavam, jogou acenos de lado a outro. O empreiteiro gordo, junto a um secretário da infraestrutura, entendeu o levantar indagativo das sobrancelhas que lhe era dirigido. No “ok” com a mão na altura do umbigo, fronte fechada, a garantia de que o repasse fora bem-sucedido.
O governador, de bochechas e testa tomadas por um afogueamento, fez sinal para o ajudante de ordens. Cochichou ao ouvido com olhos ao chão e mão em concha sobre a boca. O rapaz correu à tribuna e instruiu o mestre de cerimônia. Como resposta, só um bovino balançar de cabeça.
“Senhoras e senhores, queremos anunciar a chegada da nossa deputada federal, a quem convidamos para ocupar lugar na mesa de honra”, anunciou, por fim, a voz profunda, numa entonação deliberada e constrangedoramente impassível.
O público levantou-se em intensa ovação. No gesto reverente à plateia, viu a primeira-dama de Palmas ainda embirrada, esparramada na poltrona, braços cruzados e cenho encarquilhado; o apático bater de mãos do preocupado traidor; a prefeita ao fundo, em aplausos efusivos, satisfeita com a nova creche; e o empreiteiro gordo no “ok” insistente e sorrateiro, na clara intenção de mostrar serviço, ao lado de seu secretário da infraestrutura.
À mesa de honra, abraçou apertado, babujou o rosto e fez questão de marcar, com o rubro batom, o colarinho do prefeito da Capital. Depois deliciou-se furtivamente com a visão da distinta senhora prestes a explodir na penumbra do auditório. Ouviu afáveis palavras artificiais do deputado estadual que queria tirar-lhe a vaga no Congresso nas próximas eleições. Do governador veio a ironia franca e seca: “Você sempre pontual… Boa estratégia”. O presidente da associação de municípios divertiu-se com todo o fuzuê que a amiga costumeiramente provoca: “Bem-vinda, noiva!”
CT, Palmas, Tocantins.