Na crise do governo Uilson Antunes, os dois se conheceram numa reunião convocada extraordinariamente pelo partido. Um, pioneiro em Palmas, veio do interior do Tocantins; o outro chegara ao Estado havia apenas dois anos. Ambos defendiam que Uilson, envolto em denúncias de corrupção, deveria ser chamado para se explicar aos correligionários. Os defensores do prefeito da capital tocantinense colocaram-se contra e o encontro partidário quase termina em pancadaria.
Dali foram para o Juarez Bar, que ao longo dos anos seguintes seria local de profundas análises da política palmense e tocantinense. Com o brinde, ao primeiro copo de cerveja, decidiram deixar o partido e unir forças com a oposição. Não teve apelo dos aliados do prefeito que os demovessem da decisão de se voltar contra o grupo.
Abraçaram a campanha oposicionista de Pedro Certeira contra Uilson. No mesmo Juarez Bar deliciaram-se com um incrível tucunaré frito inteiro e, claro, muita cerveja para comemorar a derrota do prefeito corrupto.
As coisas, no entanto, não saíram como esperado. O discurso anticorrupção que os atraíra caiu no esquecimento assim que o novo governo se instalou. Nas noitadas de cerveja com tucunaré frito inteiro das sextas-feiras, o tocantinense esbravejava os bochichos que corriam pelas rodas da semana nos shoppings e nas feiras. Mais contido, o outro pedia paciência porque os do Uilson plantavam muitas histórias. Após um grande e extasiante gole, não sem hesitar e ainda de cenho cerrado numa clara insatisfação, o insurgente concluiu que era melhor mesmo dar tempo ao tempo.
Mas o tempo só reforçou as suspeitas. Pedro Certeira comprou mansão em condomínio fechado, pessoas mais próximas a ele davam claros sinais de ganhos fáceis e logo começaram a pipocar ações do Ministério Público. Surgiu a primeira divergência entre os novos melhores amigos. O que já andava indignado insistiu na tese de que tinham que romper com o prefeito e passar a criticá-lo publicamente. O outro, ainda que admitisse alguma anormalidade, continuava cauteloso, porque, justificava, os do Uilson podiam estar por trás das denúncias.
– Não podemos ser cordeirinhos de Deus nesta hora, companheiro! – sustentou o tocantinense.
– Só deixo de apoiar se vier uma condenação na Justiça – condescendeu o amigo.
Vieram uma, duas, três, e o processo de impeachment na câmara. Os dois amigos passaram a frequentar as audiências da comissão de vereadores para depois levar as informações às rodas de política dos shoppings e das feiras, onde não poupavam adjetivos nada gentis para se referirem a Pedro Certeira. Aliados do prefeito em visita aos ex-correligionários garantiam, sem convencer, a inocência do líder.
Quem também os procurou foi o próprio ex-prefeito Uilson Antunes. Arrependido dos erros cometidos na gestão, dizia-se, mas jurou honestidade. Colocava-se como vítima das injúrias de Pedro Certeira, que, com as mentiras mais disparatadas, tirou-lhe alguns de seus melhores aliados, entre eles apontava os dois amigos à sua frente. No Juarez Bar, lógico, a pauta da sexta-feira seguinte. Sob muita ponderação, cerveja e tucunaré frito inteiro, num demorado conclave, com prós, contras e nem tanto, admitiram a possibilidade de terem mesmo sido iludidos pelo corrupto Pedro Certeira, e já relembravam com entusiasmo renovado a carreira brilhante de Uilson como vereador, deputado estadual e deputado federal. Na falta de novos líderes em Palmas e diante do fracasso moral da gestão do sucessor, arrazoaram, o ex-prefeito merecia o benefício da dúvida.
Pedro Certeira renunciou para não ser cassado e o vice Silva Júnior assumiu.
Na campanha seguinte, os amigos organizavam reuniões para defender a volta do mesmo Uilson que quatro anos antes haviam ajudado a derrotar. Em discursos em fundos de quintais diziam-se enganados por Certeira, que o antecessor reconhecia erros de sua administração e que empenhara a palavra de que agora seria diferente. O candidato encerrava os eventos arrolando provas cabais, a quem quisesse ver, de que era vítima das intrigas e infâmias do adversário, e com rasgados elogios aos dois aliados reconquistados, que se ufanavam. O mea-culpa do ex-prefeito era visto como gesto de humildade do grande político tocantinense.
Por seu turno, Silva Júnior, o vice que virou prefeito, bem que tentou, em vão, fazer os ex-partidários de Pedro Certeira dar-lhe uma chance. Mas foi desconhecido. Queria, numa pálida campanha, continuar no cargo que herdara da crise que destituiu o titular. O espectro de Certeira, contudo, o perseguia para onde fosse, e Uilson obteve uma fácil vitória.
No Jurarez Bar, um brinde com cerveja seguido de um descomunal e apetitoso tucunaré frito inteiro. Os amigos celebraram a reviravolta, convencidos de que conheciam tudo da política, a ponto de até antever os resultados de cada movimento. O tocantinense revelou que o chefe de gabinete do prefeito remido e reempoderado, cortesmente, permitira-lhe que indicasse o coordenador da Secretaria de Esportes, Lazer e Juventude. Por óbvio, colocaria o filho desempregado. O outro olhou pensativo para o amigo, mas aquiesceu. Afinal, era como se fincassem bandeira sobre o morro reconquistado.
O rapaz antes desempregado não ia trabalhar. Só recebia o salário. É o que o amigo ficou sabendo e pediu satisfação do pai na sexta-feira seguinte no Juarez Bar, depois de meia dúzia de cerveja com tucunaré frito inteiro. Rebento defendido com veemência. Fuxico dos do Pedro Certeira, que não aceitavam a derrota. Como amigo que era, o outro não deveria considerar mais as aleivosias dos futriqueiros do que a postura honesta sempre demonstrada por um companheiro já de longas datas e incontáveis sextas-feiras de Juarez Bar. Esta palavra bastou e deu-se o assunto por encerrado.
Nas feiras e nos shoppings passaram, então, a se falar do superfaturamento das locações de tendas para eventos esportivos e musicais da prefeitura. O Ministério Público, de novo, entrou no circuito e arrolou na ação civil pública, além de empresários, o prefeito Uilson Antunes, o secretário de Esportes, Lazer e Juventude e o filho até o início da gestão desempregado. No concílio do Juarez Bar, em defesa de sua cria, o pai meteu a mão na mesa, virando a garrafa e espalhando pelo chão vestígios do que antes era um tucunaré frito inteiro; o outro levantou-se e foi embora.
Por um ano, a mesma mesa de sempre do Juarez Bar foi ocupada por clientes casuais nas sextas-feiras. Até o encontro fortuito no hipermercado. Tirara do cargo o filho, que voltou ao status anterior de desempregado, e falara umas boas para o Uilson, querela concluída com um de seus impropérios indizíveis direcionados ao prefeito.
– Sexta no Juarez? – instou.
O outro concordou e estendeu a mão.
As cervejas e o tucunaré frito inteiro assentaram a reconciliação dos dois amigos, que trocaram as informações dos bastidores e entabularam profundas e complexas análises dos movimentos rumo às próximas eleições, quando só vislumbravam a derrota de Uilson.
Meses depois de reuniões semanais no Juarez Bar, de intensas articulações políticas, um trouxe de novidade a visita que recebera de Silva Júnior, o vice que virou prefeito com a cassação do titular.
– Rompeu com Pedro Certeira, porque só foi prejudicado por ele, e é adversário de Uilson. Perfeito para nós, companheiro! Afinal, queremos derrotar os dois – justificou, mas o pai do filho ainda desempregado se manteve indiferente à proposta.
Várias sextas-feiras de discussões carregadas de argumentos favoráveis e contrários, dúzias de garrafas de cerveja e quilos de tucunarés fritos inteiros. Sem acordo. Ao fim de dois meses, aquele contrário ao acerto com Silva Júnior fez o impensável para não se dobrar à tese do outro: colocou à mesa, de novo, o nome de Pedro Certeira, o que fora cassado.
– O quê? Está louco?
– Veja, companheiro, é o nome mais forte hoje! O único capaz de derrotar o Uilson!
O amigo se opunha e insistia na lembrança da cassação. O outro retorquia que os dois ex-prefeitos são corruptos, e que, além de eleitoralmente fraco, Silva Júnior também acabaria metendo a mão no erário, afinal, concluiu com ar professoral, todos são iguais.
– O que quero é derrotar o calhorda do Uilson, e não tem nome melhor hoje que o do Certeira. Todos eles são farinha do mesmo saco, companheiro!
– Admito que fomos enganados uma vez, mas apoiar alguém sabidamente com histórico de corrupção é burrice!
– Tá me chamando de burro! – indignou-se o pai do rapaz ainda sem trabalho.
Novo murro na mesa verteu cerveja e tucunarés fritos pelo chão. Desta vez foi ele quem se levantou e deixou o Juarez Bar.
Uma batalha eleitoral tumultuada, virulenta, com constantes acusações recíprocas de corrupção entre Uilson e Certeira, que, por sua vez, tachavam Silva Júnior de inexperiente. Por longa temporada, a mesa cativa do Juarez Bar voltou a ser ocupada por outros fregueses, enquanto os ex-amigos combatiam em campos opostos. Ao final, ambos assistiram decepcionados a apertada reeleição de Uilson.
Só dois anos depois, um ligou para o outro. Bobagem se indisporem por conta de todos esses corruptos. Até porque, na verdade, a política era só o pano de fundo de uma amizade que já havia enraizado. Para além disso, as duas teses saíram derrotadas das últimas eleições e era preciso unir forças para contribuir com o futuro de Palmas, uma vez que o prefeito Uilson já estava às voltas com as denúncias de sempre rondando sua gestão.
A reconciliação, claro, celebrada no Juarez Bar com muita cerveja e tucunaré frito inteiro. Com a pauta represada por quase dois anos, a conversa se estendeu até alta madrugada, e as mulheres tiveram que arrastar os dois de novo melhores amigos para os respectivos carros.
O pai do filho permanentemente desempregado havia mergulhado nos debates nacionais, tragado por ventanias estranhas sopradas do Planalto Central. O outro viajou por dois meses a trabalho e voltou ansioso para se inteirar das últimas na reunião semanal no Juarez Bar.
– Tenho grandes novidades para nós! – anunciou aquele capturado por ideias nebulosas, com a mão em forma de arma apontada para o outro.
Foi a última vez que se viram.
CT, Palmas, Tocantins.