Aninha está com febre altíssima. Do nada. Passou o dia correndo entre as roseiras, subindo e descendo a mureta ao redor da casa da fazenda. Quase leva Nandinha, a babá, à loucura. Quando anoitecia, o corpinho prostrou-se. Pensava em pegar o avião assim que amanhecer e seguir para Palmas, se a elevada temperatura se mantivesse.
Uma preocupação a mais em sua cabeça, onde estava impregnada a conversa que tivera à tarde com o pai, e da qual fugira por muito tempo. Sabia que não escaparia neste feriado prolongado. Até conseguiu umas desculpas pela manhã, mas, convocado ao escritório após o almoço, se viu sem saída. No seu temperamento matuto, numa pronúncia arrastada, o velho senador dispensou o motorista e secretário particular.
– Deixa nóis proseá um pouco bem aqui, Godofredo, porque conversa com mais de dois é comício.
Rodeou mais um tempo pra lá e pra cá com trivialidades, até chegar ao ponto que o filho tanto evitara e que não podia mais ser protelado. Tinham que andar o Tocantins, negociar com seus líderes, preparar o terreno. Entrou no assunto pelo começo de tudo, o avô, há sessenta anos. Vereador, prefeito e já virou deputado federal do antigo norte goiano. Logo a pequena empresa familiar se tornava grande, atendia dezenas de municípios e avançava para os Estados vizinhos.
– Tudo isso que hoje você administra, rapaz, é fruto de muita influência construída ao longo de décadas por seu avô e este seu pai. E influência se conquista na política, mostrando que se tem o respeito do povo.
Discreto, não se via como homem público. Diferente de ter que se envolver nas campanhas do pai. Não se importava em ficar na retaguarda para garantir que os votos para o velho chegassem às urnas, desde que sua atuação se limitasse ao período que antecede às convenções até o dia das eleições. Mas lidar diretamente com política e gente o ano inteiro e todo ano não estava em seus planos.
Nandinha invadiu a sala e, à penumbra, sob a tênue luz que resvalava tímida pela janela, saiu de suas reflexões e pôde ver o olhar apreensivo da babá.
– Ela quer o senhor.
Com a pequena e delicada mãozinha abarcando o dedo grosso do pai, a menina pediu dengosamente que o dodói fosse mandado embora. Margarida alisava à testa os cabelos negros e lisos de Aninha. A mulher deu um sorriso nervoso para a filha e fulminou o marido com olhos trêmulos e orvalhados.
– Oh, minha florzinha, o que você está sentindo é seu corpinho aprendendo a lutar contra os inimigos. – O pai roçou os nós de dois dedos na ponta do narizinho curto: – Nunca se esqueça que é uma Nogueira e Silva, e os Nogueira e Silva sempre vencem.
Proteger a família contra os adversários que conquistavam terreno era a sua maior preocupação, disse o velho.
– Somos nós contra esse mundão aí fora. Moço, tudo querendo vir aqui pra riba – abriu os braços espalhafatosamente. – Não gostam da planície, não… E meu filho sabe por quê? Porque quem faz a coisa toda girar somos nós, no cume.
Deixou que o outro ruminasse as primeiras palavras por longos segundos, mirou o semblante impassível do filho e prosseguiu:
– É verdade, banqueteamos, não estou negando – ergueu as mãos espalmadas, como numa rendição. – Mas também é verdade que o desenvolvimento só chega através da nossa ação. Sem nossa capacidade empreendedora, sem emprestarmos, como líderes, nossa visão, nada se realiza.
Mais um vácuo de tempo para estudar a reação e arremeteu:
– Tu precisa entender uma coisa: o futuro desta família depende da gente se manter num cantinho bem aqui no pico. E este velho tá ficando fraquinho… Tá precisando da força dos jovens…
Submersa no palavreado mateiro do pai, a força que conquistariam com dois votos em Brasília. Mais espaço no Congresso, no Palácio do Planalto e, de quebra, no Tocantins, tanto no Palácio Araguaia quanto com os prefeitos.
A preocupação do filho era com a administração do grupo. Assumiu num momento em que as operações haviam se expandido demais e de forma desorganizada. O pai, como o avô, parecia ver as empresas como um mero caixa para financiar a política.
– Os negócios voltarão a ser relegados a um quinto plano como na época do senhor e do vovô?
– Meu filho tão inteligente não entende que os tempos eram outros. Na minha época e do seu avô, a coisa era diferente. A vida era mais mansa e fácil. Pouca concorrência e mandávamos em tudo. Não tinha disso de ser acordado por polícia às seis horas da manhã, não senhor. Rum! Quem era o doido? Aliás, a gente levantava era às quatro, cinco, mas para tomar um bom café e proseá. Às seis já estávamos pelas estradas de meu Deus. Éramos autoridade de verdade. Se o dinheiro saía fácil, também entrava fácil… Muito diferente de hoje…
Pensou no quanto a vida se complicara nos últimos anos. Os negócios, mais arriscados. Os cuidados nas movimentações, redobrados. Justamente essas mudanças não exigiam sua permanência à frente do grupo?
– Para tocar as operações encontramos substitutos, para cavucar mais mercado, não. Este seu pai aqui, euzinho – apontou os indicadores na própria direção –, deu o melhor dos estudos pra tu, meu filho, e pra seus primos. Eles estão nas empresas e podem assumir a administração. Justamente por você ter organizado tudo, só precisa de relatórios, e esse mundo estranho aí fora pelo menos para isso serve. Tem uma tal de tecnologia, uma tal de internet. Onde meu filho estiver, vai receber todos os números e documentos que precisar.
Com a redemocratização, outros grupos políticos ocuparam espaços e o mercado teve que ser redistribuído. Assim, insistia o pai, o essencial neste momento era um “bom vendedor” para abrir novas operações. O velho não confiava em nenhum outro para este papel, porque avaliava que colocar um aliado ou mesmo um parente era dividir o poder, não aumentá-lo.
– Quem chega ao cume, enxerga mais longe e vê possibilidades. Os olhos ficam deste tamanho – fez o senador.
– Sou uma Nogueira e Silva – a filhinha repetiu, manhosa, as palavras que ouvira do pai. – Tenho superpoderes como o superman e o homem-aranha?
Assentiu com um meneio de cabeça e um sorriso vago. Renteou a costa da mão na bochecha rubra da garota.
Já estava com o mapa dos prefeitos e principais líderes do Tocantins que garantiriam colégios eleitorais para o filho. Toda a estratégia traçada. Haveria de se entender com o deputado federal Eduardo da Zucan, a quem dera os votos para que chegasse à Câmara três anos antes, e com o deputado estadual Celso Fortunato, que tinha como certo que a vaga de Brasília desta vez seria dele. Era algo que o pai instrumentalizava de forma tão serena que o assustava. Essas pessoas eram leais aos Nogueira e Silva faziam muitos anos.
– Quieta! Se ajeita… – reagiu o velho. – De toda forma, um ia se zangar, não é mesmo? Logo estarão de volta. Pra que se afobar? Precisam se escorar em algum lugar, e só têm a nós.
Aninha disse que, também doente, a filha de Nandinha ficara em Palmas para que a moça acompanhasse os Nogueira e Silva à fazenda no final de semana prolongado.
– Ela também tem superpoderes como nós, papai?
A babá sufocou um choro que teimava irromper; os olhos do homem giraram fugidios.
Não era extrovertido, popular, muito menos espirituoso como o velho. Gostava era de ficar enclausurado em seu mundo corporativo. Como conquistaria votos para chegar a deputado federal?
– Moço, quem manda nos votos não somos nós, não. São nossos líderes. Somos é respeitado. – E vergando o corpo em direção ao filho, segredou: – Escute bem, absorva e guarde só para tu. Povo é que nem gado: segue quem toca o berrante direito. Às vezes vão pra lá, outras cá. Depende do berranteiro. Por isso, investimos tanto em bons tropeiros. São só o ouro!
O pai disse que a ele cabia cumprir a agenda de visitas que os líderes definiriam, e nelas sorrir, abraçar, falar em progresso, desenvolvimento, saúde, estradas, emprego.
– O resto é com eles. Faça muitos elogios a nossos peões. Cuide bem deles, cumpra o que promete, o que sempre foi nossa marca, e os votos nunca hão de faltar. Eu garanto pra tu.
Como sempre, o velho encurtou a prosa na sua forma seca e direta de apontar os desafios:
– Na política, como em tudo na vida, temos que tomar posição. Não podemos fugir das missões em que somos enfiados pelo destino, não. Meu filho terá que decidir se soma esforços com este ancião na luta para garantir o futuro da nossa família ou se fica assistindo passivamente do lado de fora, enquanto os adversários avançam. Afinal, é disso que estamos tratando aqui.
Aninha começou a reclamar de dores no peito e dela apossou-se uma tosse seca e prolongada que fazia seu corpinho sacudir na cama. Entre os espasmos, voltou-se ao pai.
– Os inimigos estão vencendo…
– Nunca vencerão! – assegurou, tentando esconder a aflição. – Somos os Nogueira e Silva…
Margarida não conteve as lágrimas. O marido mandou o capataz avisar o piloto que partiriam imediatamente para Palmas. Agoniada, Nandinha correu a arrumar as bolsas. Com a filha nos braços, o homem deixou a casa dizendo que iriam buscar reforços com o Dr. Alfredo, também um herói invencível.
– Ele é um Nogueira e Silva, papai? – quis saber Aninha, chorosa.
CT, Palmas, Tocantins.