Girou o uísque no copo num leve agitar da mão e avisou que aguardava o Eurocopter EC120 Colibri para dali a uma semana.
– Helicóptero leve, cinco lugares, autonomia de 770 quilômetros. Para cruzar Tocantins, Pará e Maranhão e ver minhas obras – a entonação quase sussurrante. – Uma loucura essa correria. Não dá para perder tempo…
– Quanto? – quis saber o homem no paletó escuro que contrastava com os cabelos e pele muito claros e olhos azuis.
– Não vai acreditar, Mauro… Setecentos e noventa e cinco mil dólares. Pelo custo-benefício…
O loiro levantou a cabeça. Um olho cerrado. Cálculos mentais.
– Bom negócio, Jader – atestou por fim. – Vai gostar. Já voei num desses. Ágil, confortável. Cor?
– Azul…
– Bela escolha.
– Não chega aos pés do Cessna Citation Sovereing do Nogueira, mas dá para o gasto… – uma risadinha de aparente modéstia.
– Jato executivo americano. Transporta até doze passageiros. Maravilhoso! Uma bagatela de dezoito milhões de dólares – Mauro ergueu o copo num brinde a Nogueira.
O outro, que até então apenas ouvia, esboçou um discreto e frio sorriso.
– Não é luxo. Os negócios. Atravessar este país continental, e sempre em estratégica companhia… – após o tom cavernoso, Nogueira deu uma piscadela aos dois amigos, devolveu o brinde e bebericou o uísque.
O trio foi interrompido pelo sorridente cinquentão, de laterais da cabeça já levemente encanecidas, que havia atravessado lentamente o corredor em meio a abraços de fortes estalidos a cada passo.
– Doutor Mauro, doutor Nogueira, doutor Jader, que trio, hein! – fez com os braços estendidos, parado diante dos empresários, afetando surpresa. – Temos aqui o maior PIB do Norte, senão do Brasil – o dedo indicador direito balançado três vezes testificava a assertiva.
Os homens gargalharam e responderam efusivos ao cumprimento do simpático conviva com mais abraços estalados.
O prefeito Eustáquio enlaçou dois dos empreiteiros com o outro de frente. Cabeças próximas. Cochichou.
– Precisamos falar… Faltam sessenta dias para a convenção. Como estão os pagamentos?
– Você tem que dar um toque no secretário… Há pendências importantes… – murmurejou Jader. Os outros dois confirmaram em movimentos comedidos mas firmes.
– Vou ver. Prioridade. Falamos semana que vem? – Eustáquio rodou os olhos pelos três interlocutores.
– O senhor manda, prefeito – anuiu Mauro, murmurante.
O político retirou repentinamente o ar grave que pesava na roda, esticou o cativante sorriso usual e seguiu para o círculo próximo, onde os estalidos nas costas voltaram a ribombar.
Jader acompanhou de esguelha os passos do prefeito e envergou ligeiramente o tronco para os outros dois.
– Muito mal nas pesquisas. O instituto fechou os números hoje para mim… Como ficamos, senhores?
– Temos muitas obras com ele. Nosso consórcio não pode reclamar… – ponderou Mauro, investigando os lados enquanto falava.
Os outros fizeram movimentos em concordância.
– Há muito em jogo aqui – a voz grave e baixa de Nogueira, ante o eco das conversas vizinhas e a música ambiente, era quase inaudível.
– Os números mostram o deputado Aguinaldo bem à frente – Jader apontou, discreto, para o moreno, cabelos crespos e gargalhada fácil, que se retorcia num grupo do outro lado do salão.
Os empreiteiros entreolharam-se.
– Quem em seguida? – quis saber Mauro.
– Eduardo Carlos, o ex-prefeito – com a mão alisando de leve sob o queixo, Jader projetou os lábios ligeiramente para o canto oposto ao de Aguinaldo, onde um idoso, cabeça toda grisalha, braços cruzados, cochichava ao pé de ouvido com um conhecido advogado. – Mas bem mais atrás.
Por outra dose do uísque, Mauro interrompeu o andar pressuroso do garçom. Os três ficaram em silêncio até o rapaz se retirar.
Jader resumiu aos sócios a encruzilhada em que estavam. Grande risco encostar-se apenas em Eustáquio, que caminha para a derrota. Abrir as conversas com outro depois de eleito custará muito mais caro.
– O pedágio será maior. Com a caneta, põe o preço e temos que pagar. Se resistirmos, empina a carroça e ficamos de molho por meses ou ano…
– Nem pensar! – trovejou Nogueira, de lábios imóveis.
– Mas, se abrirmos um canal com outro agora e o prefeito souber, adeus… – Mauro ciciou, sério. – Não vemos mais um centavo este ano e ainda estamos em maio… A estiagem só está começando em Palmas – um riso sombrio.
– Isso também precisamos evitar – anotou Nogueira, sempre gutural.
Os três submergiram em busca de resposta ao impasse, mas foram bruscamente retirados da reflexão por repentino alvoroço na entrada do salão de festas, de onde irrompeu um magricela roto, arrastando um assustado garotinho, sujo, descalço, apenas de short.
– Assim, meu filho, que vivem os maioriais… – começou o intruso, em movimentos agitados, como se, no centro do salão, dançasse em total descompasso com o ambiente, sob a apreensiva atenção de todos os olhos.
Os empreiteiros e os demais convivas se perguntavam o que ocorria.
– Enquanto lá fora reviramos lixo, é assim que os donos do mundo curtem seu fim de tarde, menino… – o homem seguia em seu balançar do corpo e das mãos rápido e ritmado, nada condizente com o jazz instrumental de fundo. Olhar fixo e circulante na intrigada plateia.
Novo tropel na entrada. Três homens grandes e fortes, encerrados em terno escuro, entraram secundados por outro, gerente do elegante salão de festas. Constrangido, este último clamava perdão a todos.
– Bom fim de tarde, doutores! Só passamos para conhecer a vida daqueles que só nos deixam as sobras… – o magricela curvou-se numa reverência teatral aos surpresos e perplexos espectadores.
– Me perdoem, senhoras e senhores… Me perdoem… Que lástima, que lástima… – o gerente parecia prestes a verter lágrimas.
Os três grandalhões saíram arrastando o invasor e a criança, que não impuseram resistência. O superior dos seguranças, de roda em roda, ainda suplicava perdão e foi também até os empreiteiros.
– Senhores, nos perdoem a falha da segurança, nos perdoem, por favor – exorava.
– Não foi nada… – minimizou Jader ao gerente, e voltou-se para todo o salão: – Pensei até que era uma performance.
Os comensais, já de volta à tranquilidade, se debruçaram em risos e o deputado Aguinaldo chegou à roda dos empreiteiros até meio cambaleante, como se à beira de um infarto.
– Doutor Jader, não poderia deixar de cumprimentá-lo por essa tirada pra lá de sagaz – revirava-se, contagiando ainda mais o salão com a gargalhada estrondosa e visceral.
O empreiteiro colocou a mão num ombro do parlamentar enquanto ambos se refaziam.
– Doutores Mauro e Nogueira… Já se conhecem? – apresentou os parceiros de consórcio.
– Só de nome – disse o deputado, enxugando as lágrimas do riso. – Mas sei o quanto o Tocantins deve aos senhores. Parte significativa de nossa infraestrutura foi feita por suas empresas…
Envaidecidos, os homens se remexeram nos paletós, enquanto o parlamentar deixava-os, convocado pela roda vizinha.
– Voltando à vaca fria… – fez Jader.
– Estamos falando de duzentos milhões de reais em obras! Há muito em jogo – com sulcos profundos e tensos na face, Nogueira soltou as palavras de um jeito firme, decidido, quase ríspido, mas sempre murmurejando.
Mauro coçou o queixo numa ponderação sobre o que ouvira.
– Calma, Nogueira… Se o prefeito está tão mal, podemos dar uma forcinha para o deputado… Como é mesmo o nome, Jader?
– Aguinaldo…
– Pois é… Aguinaldo… Forte mesmo?
– Minhas pesquisas não falham. Tem elevada ressonância nas ruas… Colocamos uns três partidos bons na mão dele, mais uns líderes populares e vai para a campanha com muita TV, rádio e apoio nos bairros. Vitória certa.
– Confiável?
– Na Assembleia tem cumprido tudo comigo…
Nogueira coçou a cabeça, e reservadamente olhou o moreno a alguns metros se contorcendo novamente em gargalhadas, numa grande roda em que era o centro das atenções.
– Recebemos as pendências do Eustáquio até junho… – continuou Jader. – Ele precisa desse dinheiro ou sua candidatura ficará muito enfraquecida. Para contar com a grana na campanha, tem que nos pagar… Vamos cumprir o que nos cabe. A questão é a quantidade de ovos que vamos pôr em cada cesta.
– Boa… – captou Mauro, com o indicador da mão que abarcava o copo apontado para Jader. – Estaremos nas três campanhas, mas canalizaremos mais ao provável vencedor.
– Com discrição, facilitamos a vida daquele que a pesquisa mostra que vencerá – completou Jader, voltando-se sutilmente para o galhofeiro Aguinaldo.
Aliviado, Nogueira levantou o cenho.
– Vou colocar meu povo em movimento já amanhã… – avisou Jader.
– Ontem… – corrigiu Nogueira, com seu ar sempre grave, porém com os sulcos da face agora relaxados.
Os três riram. Desta vez, alto.
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.)