Saudades da grana fácil que entrava a toda hora. Não tinha a aporrinhação de ter de convencer idiota a se aliar a mim nesse negócio de formar grupos de vendas de camisas, perfumes e outras quinquilharias. Vá lá que não trabalho igual a um operário. Não me levanto de madrugada, nem encaro uma hora de condução, muito menos bato cartão. Nada desses abusos infames. Também, né? Aí seria demais! Saio da cama na hora que bem quero, me divirto, faço muitas amizades, mas o dinheiro ainda é curto. Com as manhas de seduzir público que aprendi naqueles bons tempos de convivência com o simpático Orlando, chegarei ao nível diamante, milionário com uma Ferrari à porta, como o bacana da capa da revista de promoção do nosso marketing de rede.
Mas ser astro de palestra-show já está me dando no saco. Os imbecis olham você contando a maior lorota e aplaudem a ponto de estourarem as mãos. E gargalham felizes. Como são felizes, os cretinos! Cativo toda essa gente alimentando seu pecado inescapável, a ganância. São ambiciosos como eu. Só que não fazem ideia do que é ter dinheiro. Mais: ter dinheiro fácil, com o mínimo esforço. Que saudade!
Aquele filho da puta do Orlando tinha que jogar errado. Caralho! Não ouviu o que eu disse e estragou tudo. Levamos um chutaço geral na bunda. De fora de todos esquemas da prefeitura e do governo do Estado. De tudo! Zerado. Ninguém mais quis nem mesmo usar minhas contas para a transação de um por fora em troca de uma comissãozinha básica. Nada!
Que saudade daquela dinheirama!
Orlando era o cara! Conversa doce, simpatia, as pessoas se achegavam a ele rapidinho. Acreditavam no que falasse. Ainda na faculdade vi uma mina de ouro. Disse-lhe: “Faça o que eu mando e você vira vereador”. Não deu outra.
Jogamos um lero na molecada sobre o lance de passe-livre do coletivo, carteirinha de estudante pra cinema e essa porra toda e, pá!, presidente do DCE, quase sem oposição! Lideramos os protestos contra o aumento abusivo da mensalidade daquela porcaria de faculdade e selamos nossa passagem para o Legislativo municipal.
A fama dele viajou à frente e Orlando virou sinônimo de luta estudantil, de combate à desigualdade, de inclusão social e todas essas baboseiras que ecoam mole, mole. Povo de igreja, da periferia e, claro, os universitários inteligentinhos caíram igual pato.
Apareceu empresário de todo lado querendo doar. Por dentro e por fora… Digo, o oficial e o extra. Tanto que minha preocupação era sobrar. Com o povo todo pedindo voto gratuitamente, numa confiança cega no que Orlando dizia, não foi difícil restar algum para nós. Gastamos pouco, juntamos muito.
Na câmara, era chefe de gabinete do novo vereador. Ele, a rainha da Inglaterra; eu, o primeiro-ministro. Orlando queria setenta por cento. Ora, o cara é a simpatia em pessoa, o filho, o pai, o irmão, o marido, o neto, o genro, o cunhado, o cacete que todo mundo quer ter. Agora de esquema quem entende é o papaizinho aqui! Fechamos sessenta a quarenta depois que jogou na minha cara que sem seu mandato a roda não girava. Foi esperto. Tive que ceder.
Pela grana que jorrava, estava bom demais.
Era obediente o moleque! Cumpria à risca o que eu mandava. Aprovação de pedido de empréstimos para construção de moradias, creches e postos de saúde; orçamento municipal, projetos de lei para isso e para aquilo. Tudo tinha que passar pelas Excelências. O prefeito estava em nossas mãos. Dava empregos na máquina para os nossos cabos eleitorais elogiarem o vereador o dia todos nos bairros e, para nós, o que queríamos, money. Muito!
Uma vez o canalha quis cantar de moralista, austero, republicano e o que o valha pra cima de moi. Falou da necessidade da população, da uso correto dos recursos públicos, do dinheiro suado do contribuinte e outras demagogias do gênero. Só olhei para o fulano e falei “psiu!, aqui não, camarada!” “Do jeito que isso é um negócio pra tu, é pra nós. Faz esse discursinho de Madre Teresa para jornalistas e para seus eleitores, pra nós, não! Nessa suruba todo mundo tem que gozar. Aqui é cash!” Foi bem assim. Na lata. O prefeito saiu cuspindo fogo, mas loguinho chegou o secretário da Casa Civil com a preciosa mala. Quem esse povo pensa que é? Estadista? Churchill? Roosevelt? Vá pra puta que pariu! Aqui é Brazuca, caralho!
Estávamos de mansão, carrão e viajávamos pelo mundo. Não havia limites. Que saudades!
Então veio a eleição para deputado estadual. O simpático Orlando encantava o público e eu os muchibas dos empresários. O dinheiro aparecia. Aos montes. E não? Fazíamos compromisso de tudo quanto é jeito: apoiar a troca do banco que administrava os consignados dos servidores, a redução de área de preservação permanente de paraísos ecológicos, lobby para laboratórios de remédios, empresas para cuidar do lixo hospitalar, da alimentação dos presos, dos uniformes dos alunos da rede estadual, terceirização de tudo quanto é serviço da porra do Estado, emendas parlamentares carimbadas para as empreiteiras dos nossos patrocinadores faturarem em cima dos municípios. Enfim, negócio sobre negócio.
Campanha cara do caralho! Mas sobrou um troco bom. Deu para a gente se higienizar do cheiro de pobre impregnado em três meses intensos de corpo a corpo, quase 24 horas seguidas cercados de povo. Não aguentava mais. Fomos à Ilha de Capri, Veneza, Milão, passeamos por toda a Europa com nossas gatas. Deslumbradas. Um sonho antigo das mulheres. Agora realizado.
O ritmo dos achaques foi o mesmo que mantínhamos na Câmara, mas com valores bem maiores e possibilidades infinitamente mais abundantes. Todo mundo quer sugar a teta do erário do Estado, mas a mesma lógica do município prevalecia: as Excelências são o pedágio. Quer ganhar?
Então, paga. Ou não passa. E o grupo que construímos na Assembleia estava coeso, decidido a faturar tudo o que podia. Todo mundo faminto.
Grana que nunca sonhávamos um dia ver. Tanta que algo inesperado ocorreu. Orlando perdeu o controle. O cara passou a fazer discurso na tribuna sem falar comigo, receber empresários e emissários sem que eu soubesse e achacar sem precaução. Avisei que não era assim que a porra girava. Tinha um rito e todo um protocolo que precisavam ser respeitados. Ele não sabia os macetes da coisa e se achava no direito de meter a faca no pescoço de qualquer um.
Os empresários do segmento de pneus se uniram quando o deputado quis arrancar uma bolada fodida para não apresentar um projeto de lei que, se aprovado, obrigaria o setor a grandes desembolsos tributários. Coisa de amador, de agoniado como ele estava para comprar uma baita fazenda que era o paraíso. Eu disse para o filho da puta ter paciência que daria um jeito. Tinha a estratégia pronta. No máximo em um ano ele estaria com patroa porteira adentro. Xingou-me de imprestável, inútil, que eu não resolvia nada, que tinha se cansado de mim e por aí foi. Às vezes acho que a doideira daquela época era tamanha que Orlando estava cheirando. Só podia ser isso.
Não levou a sério minha novena e enfurnou-se numa conversa com os fulanos sem me dizer lhufas. Socou a mesa e pediu os R$ 2 milhões que o dono queria pela fazenda. Garganteou que fazia e acontecia, que era da cozinha do governador e o caralho, que se não dessem iam se estrepar. Saiu batendo a porta, segundo me contou às gargalhadas logo que chegou ao gabinete. Tremi todo. Falei que tinha se arriscado demais e que essa exposição poderia lhe custar caro. E custou.
Tudo armação. O imbecil foi gravado. Dias depois, vi a manchete do site de notícias num café-da-manhã. No susto, esbarrei a mão na merda da xícara e todo o líquido quente ferveu minha calça. Urrei atirando imprecações pra todo lado. O celular disparou. Acabou, pensei na hora.
A Polícia já revirava o gabinete. Orlando sumira. Não estava em sua casa, na chácara, nem nos hotéis em que fazíamos reuniões às escondidas. Havia prisão preventiva contra o deputado. Fui levado à delegacia pela tal condução coercitiva, coisa que naqueles tempos pouco se ouvia falar.
Passei horas tentando enrolar o delegado, neguei qualquer relação com o caso, e, pelo menos desta vez, não tinha mesmo. Jurei que, na minha função de chefe de gabinete, jamais soubera de qualquer ação ilícita do Orlando. Claro que era uma mentira das mais deslavadas. Óbvio! Euzinho era o mentor intelectual dos esquemas que estavam em cada folha que o Excelentíssimo assinava.
Quando me liberaram achei que estava livre. Nada. Minha vida virou um inferno. Descobriram que meu patrimônio não era compatível com a minha renda. Não mesmo. Meu bom salário era uma merreca diante do que vinha dos rolos.
Orlando ficou meses foragido, escondido na fazenda de um amigo nosso, empresário no Pará. Entregou-se quando não suportava mais. Recambiado, chegou cercado por toda a imprensa. Microfones, câmeras, flashes, perguntas estúpidas… Essa corja de abutres hipócritas! Em pouco tempo, além de encarcerado, cassado, liquidado, a esposa o deixou — a família, tradicional no Estado, não a queria exposta e pressionou. Todos os bens arrestados. Não lhe sobrou nada. Burro!
Também perdi tudo. Passei uns meses preso, depois veio a condicional, até que me esqueceram. Afinal, graças aos céus, vivemos no país do carnaval, irmão! Viva!
Atravessei o Brasil, porque precisava recomeçar e lá, por óbvio, era impossível. Embarquei nesse lance do marketing de rede, com a lábia que aprendi nos esquemas e assistindo a performance de Orlando.
Por falar nisso, deixa eu entrar para mais uma palestra-show em que me finjo de bem-sucedido para um monte de cretinos de sorriso tonto na cara querendo aprender a ficar rico.
Sobre Orlando? Sei nada, não. Ele que se foda!
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.)