Estava com medo de apanhar. Com os cotovelos escorados nos joelhos e a cabeça abarcada pelas mãos, contemplava os novíssimos sapatos luzidios, comprados na véspera para a sua estreia de vereador. A gravata com motivos inspirados na bandeira do Brasil pendulava entre as pernas, impulsionada pelos frenéticos e curtos movimentos dos pés sobre o piso. O presidente da Câmara, Gilson Rodrigues, o diretor-geral, Reginaldo Nuñes, e o diretor de Comunicação, Décio Almeida, ocupavam as poltronas ao redor de Fernando Antunes da Silva Junqueira Segundo, encarando-o até com certa comiseração, mas, furtivamente, entreolhavam-se com risadas mal contidas.
Na sua voz enrouquecida, o presidente Gilson Rodrigues simplificava, com ironia calculada, a confusão em que se metera o jovem e estreante vereador, enquanto aconselhava o afoito rapaz a ir devagar ao pote. Fora eleito na base governista e teria direito a empregar trinta de seus cabos eleitorais na estrutura da Prefeitura de Palmas. Mas a reeleição do presidente da Casa, lembrava o titular do cargo, era fundamental à governabilidade, como, inclusive, o prefeito Mauro já havia deixado claro a todos os seus parlamentares. Isso porque do outro lado estava Walfredo da Vila, feroz opositor, que, se tomasse o comando da Câmara, imporia obstáculos a todas as matérias de interesse do Executivo.
Numa piscadela para seus dois diretores, Gilson descartou qualquer apego à presidência.
– Vaidade não é comigo, mas o que está em jogo é a governabilidade – escandiu a última palavra para em seguida minimizar novamente seu interesse na eleição da mesa diretora do Legislativo: – Sou só um peão neste tabuleiro.
– Por que não me disseram antes de eu ter feito compromisso com o Walfredo e o pessoal dele! Vocês não me ofereceram nada e eles me garantiram uma vaga na mesa e a indicação de um cargo na Casa…
– Que cargo? – perguntou Décio Almeida.
– De diretor de Comunicação…
– Ora, o meu!… – o indignado Décio foi rapidamente atalhado por um gesto apaziguador do presidente da Câmara.
Gilson quis saber, afinal, o que mais o novato vereador almejava. Ganhara trinta cargos comissionados na prefeitura e poderia empregar seus mais importantes cabos eleitorais.
– A gente sempre busca um pouquinho mais, não é assim? – Fernando olhava para os outros três esperando, desesperadamente, uma cumplicidade.
– Não, não é assim, meu amigo – discordou, pedagogicamente, o presidente da Câmara.
O diretor-geral, Reginaldo Nuñes, apesar da longa experiência em assessorias políticas, ainda se admirava ao ouvir um crápula sendo chamado de “meu amigo”. Tudo bem, sabia que era parte do show, até condoía-se da aflição do jovem edil, mas não daria conta de contemporizar a esse ponto.
– Política se faz coletivamente. Não é uma atividade individual – ensinou Gilson ao garoto. – Se você foi eleito por um grupo precisa ouvi-lo antes de tomar decisões…
Fernando encarou o presidente com a aflição estampada na face, mergulhou de novo a cabeça entre as mãos e, em seguida, levantou-se de supetão.
– Meu Deus, e agora? – pôs-se a andar de um lado para outro como se buscasse uma saída para ele inexistente.
Com um leve sorriso desenhado no rosto, Gilson recomendou que o rapaz se acalmasse e procurasse pensar no que era mais importante agora: ter uma função na mesa e indicar o diretor de Comunicação – viu Décio se revolver irritado na poltrona e por pouco não pôs tudo a perder com um acesso de riso – ou nomear trinta militantes no município para serem os maiores divulgadores de seu nome e seu trabalho por toda a Palmas pelos próximos quatro anos.
Fernando parou por alguns segundos e, pensativo, contemplou o presidente. De repente, colocou de novo as mãos na cabeça e desabou em desespero:
– Meu Deus! Eles vão me matar… Já estava tudo acertado, garanti o voto para o Walfredo da Vila… Jurei que não haveria retorno. Meu Deus! Gilson, vou apanhar hoje aqui… – o vereador voltou a sentar-se e começou a soluçar. – Vão acabar comigo…
O presidente da Câmara pousou a mão sobre o ombro do colega em pânico, afiançando que, se Fernando lhe desse o voto para a reeleição, ninguém lhe encostaria um dedo sequer.
– Você é vereador, representante eleito pelo povo, tem direito de decidir o que julga melhor para a sua comunidade. Sua escolha é livre, uma garantia assegurada pelo Estado Democrático de Direito!
– É?… – Fernando mirou hesitoso o presidente da Câmara com o pavor incendiando-lhe os olhos.
O diretor Nuñes saiu apressado da sala sufocando uma gargalhada que lhe rompia das entranhas como lava de vulcão em erupção.
– Tem a minha palavra… – reforçou Gilson.
– Como vai garantir isso?
O presidente levantou-se e caminhou solenemente em direção a Décio, que, após sentir seu cargo em xeque, pôs-se pensativo num canto da sala, e ordenou que o diretor de Comunicação trouxesse imediatamente à sua presença o chefe da Segurança, Ronaldo Zóio. Em questão de minuto, entrou um sujeito de quase dois metros de altura, cara de mau, braços e peitoral que pareciam prestes a esfrangalhar o apertado terno que os revestiam.
– Pois não, presidente – ressoou a voz retumbante do chefe da Segurança.
– Zóio, você vai ficar pessoalmente ao lado do vereador Fernando. Não aceito que relem nele um dedo mindinho sequer! Está me escutando? – Gilson tinha o dedo em riste, no seu jeito peculiar, com o braço curto de mão pequena quase colado ao peito.
– O presidente pode ficar sossegado. Ninguém falará nem grosso perto do vereador doutor Fernando… É minha palavra! E Zóio nunca descumpre o que diz…
Gilson, então, ajeitou o paletó, a gravata e, de sobrancelhas frisadas, voltou-se para Fernando.
– Está bom assim?
– Obrigado – balbuciou o rapaz, ainda trêmulo, com um ricto no rosto.
Em seguida, retorceu a face, cobriu o estômago com os braços e todos ouviram uma ebulição na altura do abdômen do jovem edil.
– Preciso ir ao banheiro – anunciou Fernando, saltando da poltrona e correndo da sala da presidência em passos trôpegos.
Gilson mandou o segurança acompanhar o vereador e se dobrou numa gaitada represada desde o início da conversa.
O clima tenso da sessão quase poderia ser apalpado. Algo muito estranho ocorria em plenário e o presidente da Câmara percebeu assim que colocou os pés na sala. Rapidamente, o vereador Ganso, seu principal articulador na campanha de reeleição, aproximou-se. Otávio e Luiz Xinéu, eleitos na oposição pelo mesmo partido e atraídos para a base governista com os trinta cargos cada, recuaram e decidiram votar em Walfredo da Vila.
– Deram a vaga de vice-presidente da mesa para o Otávio e tem uma boa proposta em dinheiro para os dois para cobrir a dívida de campanha.
– Filhos da puta… – reagiu Gilson.
– Você recuperou o voto do Fernando, mas esses do Otávio e do Xinéu definem a partida.
Ganso avaliou que estava difícil reverter. O prefeito Mauro precisava entrar pessoalmente na história. O presidente da Câmara respondeu com um semblante de preocupação e voltou a se recolher ao gabinete.
O diretor de Comunicação, Décio Almeida, foi convocado à tribuna da imprensa. Walfredo já havia espalhado que Otávio e Xinéu nunca deixaram a oposição. São companheiros fiéis, de posição firme e não seriam comprados por cargos na máquina pública.
– A saída deles do grupo foi mais uma fake news desse prefeito indecente e inescrupuloso, que quer manter a Câmara como um puxadinho do Paço – tinha dito numa matéria que acabara de ser postada no blog do jornalista Bruno Jordão.
Assim que se aproximou, Décio foi cercado pelos profissionais de imprensa. Desconversou. O momento era de muita especulação de lado a lado, nada definido, tudo estava sendo conversado de forma muito democrática e sem qualquer interferência do Executivo. Os jornalistas voltaram a seus notebooks para postar a declaração do diretor de Comunicação da Câmara, que agora olhava angustiado para o plenário.
Viu o diretor-geral, Reginaldo Nuñes, aproximar-se e cochichar ao ouvido de Ganso. O vereador deixou o plenário em direção ao gabinete da presidência e, pouco tempo depois, Nuñes retornou e foi até Décio.
– E daí?
– Gilson conversou com o Mauro. O prefeito ficou de ligar para o Otávio – resumiu Nuñes, cabeça encostada à de Décio e mão em concha à boca. – O presidente pediu para chamar o Ganso e mandou que eu saísse. Os dois ficaram lá conversando.
– Que acha? – Décio cofiava o cavanhaque entremeado de pelos brancos.
O outro apenas ergueu os ombros.
Um burburinho correu o plenário quando Ganso apareceu tenso e aproximou-se de Otávio e Xinéu. Walfredo cercou, açodado, seus dois eleitores reconvertidos. De longe, diretores, jornalistas, vereadores e a claque que ocupava a galeria só puderam acompanhar movimentos bruscos de mãos e bocas de Walfredo e Ganso. Por fim, o aliado de Gilson e os dois rebelados saíram em direção ao gabinete do presidente, após Otávio fazer um gesto pacificador para o candidato da oposição, que deu as costas num estirar de braço cheio de raiva e aproximou-se de seu grupo para um relato exaltado.
Foram sessenta minutos de expectativas, conversas telefônicas em tom confidencial, cochichos ao pé do ouvido e rodas de sussurros sob olhares tensos e gesticulações coléricas.
Enquanto o mundo à sua volta movia-se sob total apreensão, o vereador Fernando ainda tinha a cabeça enfiada entre os braços guarnecido pelo espadaúdo chefe da Segurança, Ronaldo Zóio.
Os primeiros que voltaram ao plenário foram os dois correligionários revoltosos. Quietos e num ar inexpressivo, isolaram-se em suas mesas, que se avizinhavam, e ignoraram as provocações do enfurecido grupo de Walfredo da Vila. O vereador Ganso entrou minutos depois, acompanhado por olhares cheios de expectativas dos jornalistas e dos dois diretores, Décio e Nuñes. Esses últimos o questionavam com sinais de mãos e ombros. O parlamentar só lhes devolveu um sorriso frio e ocupou seu lugar no plenário.
O presidente Gilson chegou, por fim, com uma sombra sobre a face. Exasperados, os dois diretores faziam movimentos de operadores de voo, mas eram como se invisíveis. Mesmo quando se voltava na direção deles, Gilson parecia contemplar o vazio.
– Havendo número regimental, em nome de Deus e do povo palmense, declaro aberto os trabalhos da presente sessão – iniciou o presidente da Câmara, numa voz de clara tensão, cabisbaixo.
Quando chamado a votar, Fernando levantou-se trêmulo e seguiu em passos hesitantes, olhos fixos nos sapatos luzidios, acompanhado de perto por Ronaldo Zóio. Resmungos da galeria eram atirados contra o vereador, que interrompeu a marcha por alguns segundos, sem levantar a cabeça. O segurança tranquilizou o parlamentar com a mão sobre seu ombro, lembrando-o de que estava protegido e ciciou para o rapaz seguir. Vacilante, o jovem retomou o trajeto, sob o murmurinho agora mais intimidador da claque trazida por Walfredo da Vila. Com Zóio de prontidão, braços cruzados e olhos cravados no plenário e no público, Fernando assinalou o voto ouvindo ofensas disparadas entredentes e depositou a cédula na urna. Assim que o papel farfalhou no fundo do receptáculo, o vereador dobrou-se com as mãos sobre o estômago – que retomava a mesma ebulição de antes, mas desta vez com força vulcânica – e disparou em direção ao banheiro, sob gargalhadas e insultos da plateia e dos oposicionistas em plenário.
– É agora – cochichou o diretor Nuñes para colega Décio Almeida.
Os vereadores nomeados como escrutinadores viraram a urna sobre a mesa e passaram a contar as dezenove cédulas. Depois separaram os votos de Gilson e Walfredo. Enquanto eram somados, um silêncio brutal e ansioso congelava plenário, galeria e tribuna de imprensa. Por fim, um dos parlamentares voltou-se solene para a mesa diretora da Câmara:
– Presidente, confirmados dezenove votos dos dezenove vereadores, dos quais onze votos para o candidato Gilson Rodrigues e oito votos para o candidato Walfredo da Vila.
A base do prefeito Mauro explodiu em comemoração e o grupo de oposição manteve-se silente e sentado. Nuñes e Décio abraçaram-se emocionados e aliviados. Aliados foram cumprimentar Gilson, que os recebia inexpressivo. Até os diretores estranharam a falta de emoção do chefe ao cumprimentá-lo – emudecido, aperto de mão frouxo e olhar baço. O presidente reeleito se retirou ao gabinete logo que conseguiu se desvencilhar das infindáveis e já irritantes felicitações.
Após procurá-lo em plenário para a tradicional entrevista com o eleito, o jornalista Bruno Jordão se dirigiu à presidência. Bateu na porta e abriu, um atrevimento permitido pelos anos de relacionamento. Reclinado na cadeira executiva com os pés sobre a mesa, Gilson permanecia com o mesmo semblante indefinido. Fez, por fim, sinal para o amigo se acomodar.
– Não foi uma vitória, mas uma derrota – disse o reeleito, após os dois permanecerem por intermináveis minutos em silêncio, num desabafo desditoso com uma voz rouca e pastosa, em tom quase inaudível.
– Ora, por que diz isso, presidente? Uma virada e tanto…
Gilson recolheu repentinamente os pés sob a mesa, acomodou-se na cadeira e inclinou-se para o jornalista.
– Já ouviu a expressão vitória de Pirro?
– Sim… Se refere ao rei que sacrificou grande parte de seu exército para derrotar os romanos séculos antes de Cristo…
– Isso. Isso…
O jornalista e o político, então, ouviram as gargalhadas inocentes do diretor-geral, Reginaldo Nuñes, e do diretor de Comunicação, Décio Almeida, que invadiram o corredor e foram se avolumando à medida que os dois aproximavam-se da sala do presidente.
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.)