Deixou o carro já estirando braços e pernas no ritual diário que antecede sua caminhada. Na cabeça martelava o convite do partido para se filiar. O presidente da agremiação não tinha dúvida: suas chances de se eleger vereador são enormes. Mal conseguira dormir, tamanha a empolgação. Para aplacar a ansiedade, nada melhor do que percorrer o parque, cruzar com pessoas, ver os bichos e respirar o ar absolutamente puro, ofertado gratuitamente pela mãe natureza.
Tomou a pista que circulava o espelho d’água e seguiu os passos ainda pachorrentos dos poucos madrugadores que ousaram deixar suas casas. Sob as árvores, o sacrifício era compensado pelo friozinho pálido, mas nada condizente com o costumeiro sol causticante da bela cidade.
À medida que o corpo esquentava e as pernas ganhavam agilidade, a voz do presidente do partido assomava-lhe mais vivamente: “Você tem grande potencial!”… “Não tenho dúvida de que preenche os requisitos”… “As pessoas adoram você!”… “Está praticamente eleito!”…
Não tinha dinheiro. Verdade. Perdeu a única eleição que disputara, para presidente da associação de moradores de sua quadra. Também verdade. Mas não se lembra de alguém mais solícito, pronto a servir, a socorrer, a se oferecer, a cuidar. Subia aos trambolhões semanalmente os seis lances de escada com as dezenas de sacolas de compras da vizinha idosa. Correra para o Hospital Geral de Palmas com o senhor do segundo andar vítima do AVC. Nunca se incomodava em ficar com os cachorros da mulher do terceiro, que todo mês viajava a Jaraguá para buscar as roupas que mercadejava de porta em porta. Quem se voluntariava antes de todo mundo na quermesse de São José, da qual se ufanava de ser o pregoeiro oficial do leilão de frangos e porcos assados. Não se lembrava de outro com tamanho currículo para se candidatar a vereador em pé de igualdade.
“Você tem grande potencial!”, insistia a convincente voz do presidente do partido, cada vez mais próxima e real.
Da pequena ponte apreciou os prédios que se projetavam por detrás das árvores, do outro lado do lago, e se refletiam tortuosos de cabeça para baixo no espelho d’água. O deslumbramento daquela imagem portentosa do alvorecer, um pedaço da beleza única da jovem cidade, aguçava o ardor do futuro parlamentar. “O desenvolvimento deste lindo lugar passará por essas mãos!”, contemplava-se.
Retomou os passos ainda mais aquecidos pelos primeiros minutos de esforço em meio àquela epifania que o dominava e o sublimava mais e mais a cada metro. “Por aqui, Excelência”, parecia indicar-lhe o cágado solitário sobre o toco que se erguia da água, e o asfalto da pista convertia-se no tapete vermelho pelo qual desfilava sob a reverência dos cidadãos palmenses, mimetizados na sinistra dupla de jacarés. Sentiu-se incomodado pelos flashes que espoucavam ao bater sincronizado e ligeiro das coloridas asas dos três casais de araras que levantaram repentino voo, perturbados por sua presença.
Pelo gramado, à margem do lago e à dezena, se espraiava a grande atração do parque, deleitando-se com os primeiros raios solares. Nas indolentes capivaras via o público ávido por sua palavra na tribuna da Câmara. Estacou diante do bando. Algumas se reviraram, em total lassidão, e contemplaram interrogativas aquele sujeito estranho numa gesticulação muda. Tomado por uma euforia abrasadora, o vereador tinha seu discurso interrompido a cada minuto pelos aplausos da plateia embevecida com a retórica arrebatadora. Ao final, constrangido, curvou-se diante do auditório, que o ovacionava.
Entre muitos convites para eventos da alta sociedade, a dúvida sobre quais teriam a grandeza de sua presença. “Aguardam sua confirmação, Excelência”, pressionava a iguana agarrada ao tronco da árvore, com seu olhar severo emoldurado pela couraça verde fosforescente.
As diligentes corujas, com seus enormes olhos amarelados e movimentos bruscos de pescoço, lembravam-lhe das solicitações de audiências de prefeito, governador, deputados e senadores. Todos afoitos por seu apoio, por sua palavra esclarecedora, pela energia contagiante de sua companhia. Uma daquelas aves, num estranho cair da cabeça, fez referência também à demanda insistente – incômoda até – dos mais renomados jornalistas por sua declaração sempre reveladora, manchete garantida para os sites e combustível necessário aos calorosos debates das redes sociais.
No túnel de árvores, ao final da pista, os saguis agitavam-se de um galho a outro. “Meus assessores, o que querem?”, quis saber o vereador, braços cruzados ao peito, pés sobre o meio-fio. Os primatas quedaram-se e, com ar grave, encararam o parlamentar hirto à frente. “Ainda não nomeou meus aliados! Esse prefeito é um brincalhão!”, reagiu Sua Excelência ao que mal acreditava ter ouvido do gabinete. Em seguida, a informação mais inquietante de seus pequenos assessores: aquela propositura não seria remunerada com o costumeiro “extra”. “O quê? Quer que eu vote com ele sem nada em troca?”, gritou, ensandecido, num rompante de fúria com notícia tão despropositada.
Pulava de um lado a outro, do meio-fio para a pista, depois à terra; virava-se em cambalhotas, girava em sucessivas estrelas. Toda estripulia seguida pelos ligeiros olhos assustados dos intrigados e estáticos saguis. “Que população!”, insurgiu-se o vereador contra o alegado interesse público da matéria. “Essa mesma população que não sai daqui do gabinete? É conta de água, luz, gás, remédios, até viagens! Quer que eu pague tudo! Leva todo o miserável salário que recebo… E como me capitalizo?” Ajuntou um punhado de pedras e atirou contra aqueles seres miúdos, que, aos saltos e bramidos esganiçados, embrenharam-se bosque adentro. “Incompetentes! Sumam daqui e digam àquele safado do prefeito que sem mala, sem voto.”
Aprumou-se após a saída agitada e saltitante dos minúsculos assessores. Respirou fundo e seguiu em direção ao estacionamento. Precisava elaborar o discurso da homenagem que receberia à noite dos comerciantes e industriais, em suntuoso jantar com a presença dos mais ilustres membros da alta sociedade.
Ao volante, a voz do presidente do partido voltou a reverberar, como eco de um futuro não tão distante, confirmando cabalmente seu talento para o Legislativo. “Você tem grande potencial!”