Dona Sandra chegou decidida à chácara dos amigos Zé Maria e Socorro, os sogros do meu filho Jorge. No alvo, uma femeazinha. As últimas cachorrinhas que tivemos foram as bassets Sandy e Manhosa há quase 20 anos, ainda no interior de São Paulo. Depois disso, só duas gatinhas já em Palmas. Branquinha, rueira, morreu atropelada; e Pretinha, extremamente caseira, aos 17 anos comemorados neste mês, é minha companheirinha, sempre próxima de mim no escritório. Quando saio do banheiro, lá está a gatinha sentada à porta me aguardando.
Exigente, Dona Sandra não recuava: machinho faz xixi em qualquer lugar e é agitado. Femeazinha, como próprio das damas, mais contida nas necessidades e no comportamento. Apesar dos critérios preestabelecidos, acabamos sendo escolhidos. Ao entrarmos no cômodo onde os filhotinhos de basset permanecem até o desmame, um rapazinho malhado já se enroscou nos meus pés, ficou zanzando no meu entorno e me encarando com olhinhos azuis de pedinte. Bastou. A própria futura mamãe se encantou, deixou pra lá a imposição de que o mundo pet também deve ser campo de empoderamento das fêmeas e tascou na hora o nome do filhinho mais novo: Romeu.
Voltamos da chácara sem o novo herdeiro dos Toledos, que precisava de mais tempo com a mãe biológica, mas seu olhar, o corpinho malhado e o rabinho abanando como batuta frenética de maestro não nos saíam da mente na rápida viagem que fizemos em seguida ao Paraná. Estávamos ansiosos para trazê-lo para casa.
Logo que retornamos a Palmas, Zé Maria entrou no apartamento com Romeu. Barriguinha rosada salpicada de manchinhas caramelos intumescida por ter furado o cerco do nosso amigo na chácara e se empanzinado na ração, mas cheio de graciosidade e beleza. Uma obra-prima do Criador. Passou a circular pela casa, em reconhecimento do território, sob o encantamento geral dos humanos, que já o inundavam com todos os mimos.
À margem desse êxtase, Pretinha não gostou de ver sua hegemonia perdida de forma tão repentina. A idosa misantropa nunca foi boa anfitriã para os bichinhos que nos visitam. Que o diga Barney, um lorde de finura ímpar no comportamento, profundo respeitador do ambiente e das pessoas e, que, por isso, sabe-se indesejado e mantém o exigido distanciamento. Quem também pode dar testemunho do mau humor da felina é Bitoca, que, ao tentar mostrar simpatia, acabou ouvindo umas malcriações. Irmã de Romeu de uma ninhada anterior, a basset até algumas semanas invadia o apartamento em redemoinho, mas agora, já mais madura, tomou feições de dama refinada. Os dois cachorrinhos dos meus filhos Victor e Jorge sempre foram tratados com total desdém pela “dona” da casa. Quando entram, Preta, discretamente, se retira para um dos quartos, com ar de superioridade, e lá permanece até os visitantes para ela indigestos se retirarem.
Com Romeu, essa postura indelicada de matrona arrogante é de pouca valia, uma vez que a novidade da casa passou a também ostentar o título de morador. Ou seja, a idosa não só teve que dividir o reinado, mas, pela graça natural do bassetzinho, pela qual todos se derramam, a bichana ainda perdeu grande parte da atenção antes exclusiva dela.
O temor de todos era que Preta se insurgisse a ponto de passar da indiferença à agressão. Assim, aproveitando as caixas que repousam rente às paredes, no preparativo da breve mudança de lar que agita esta família há algumas semanas, ergueu-se até barricada no já diminuto apartamento para evitar um confronto entre os seus dois moradores de patas.
Mas uma hora teriam que ficar cara a cara. E ficaram. Várias vezes. Nesses arrostamentos, ainda agora, passada mais de uma semana da chegada de Romeu, Preta se ouriça toda e grita num riscar de fósforo que faz todos os humanos correrem alvoroçados em socorro, em total desespero.
É preciso reconhecer que houve avanço. Antes, ambos sequer podiam dividir o mesmo espaço, porque Preta não admitia a presença do irmãozinho indesejado no cômodo em que estava. Agora já aceita que fique nas proximidades, desde, claro, que mantenha a devida distância. O problema é que, à medida que se acostuma com a casa, Romeu se torna mais provocador. Anda autoconfiante com as perninhas arqueadas, chacoalha as avantajadas orelhinhas como se fosse levantar voo e faz questão de avançar sobre a idosa felina, deixando todo mundo aflito. Diz a veterinária que vão se socializar. Todos aguardamos esse milagre.
A relação com a Preta não é o único problema que Romeu trouxe para a dinâmica do apartamento. Tem outro, nada agradável, na verdade, muito constrangedor e até difícil de descrever, mas que devo revelar (e já aviso aos leitores mais sensíveis que pulem as próximas linhas). O fato é que o cãozinho tem o repelente costume de recomer prazerosamente o que descartou após se fartar da ração, ávida e desesperadamente, como é do seu feitio.
Assim, todo o apartamento agora se põe em constante alerta para evitar duas situações inconvenientes: um risca-faca entre os dois pets e ainda que Romeu saboreie como sobremesa o que despeja assim que termina a refeição principal. Esta última missão é mais fácil durante dia, ainda que, volta e meia, o espertinho consiga romper a rigorosa guarda familiar para apreciar a gastronomia exótica autoexpelida.
O drama é à noite. Aí que Romeu mais revolucionou a rotina da casa. Dona Sandra ou eu precisamos estar atentos a qualquer movimento furtivo na escuridão. Quando um ouve as ágeis patinhas se deslocando e o chaocoalhar frenético e ritmado das extensas orelhinhas já acende a luz do celular para sondar. Às primeiras observações, o espia apresenta o relatório: “É só xixi no tapete higiênico”. Aliviados, retomamos o sono dos justos.
Contudo, quando as patinhas avançam para a porta do banheiro, o corre-corre toma conta do quarto, as luzes imediatamente são acesas, um já fica de papel higiênico em mãos e outro pronto para agarrar o travesso antes que abocanhe de sobrepasto o fruto do popular “número 2”.
Romeu trouxe complicação para um lar banhado por mar de tranquilidade, com uma gata idosa que atravessa grande parte da noite e do dia dormindo. Porém, ele e Pretinha ajudam a preencher parte do ninho vazio deixado pelos filhos que cresceram e voaram. Revivemos com Romeu e nossa felina os momentos da infância fugaz dos meninos que se tornaram homens.
Essa revolução que o bassetzinho causou em nossas vidas nos renovou e encheu os nossos corações. Foi o melhor presente de Natal que já recebi. Por isso, minha eterna gratidão aos amigos Zé Maria e Socorro.
E aos leitores, Romeu, Preta, Barney, Bitoca e todos os demais Toledos desejamos um feliz Natal!
CT, Palmas, 22 de dezembro de 2021.