Hoje, no ritual matinal do desjejum, fui surpreendido com um pão feito em casa, fruto das artes e ciências da esposa.
A beleza, o sabor a um só tempo delicado e forte como costumam ser as coisas integrais, remeteram-me a algum distante momento literário (penso que algum conto ou romance da literatura russa), onde um dos personagens, em face de uma criança faminta e com olhos pidões, dá-lhe “uma grossa fatia de pão”. A força contida na frase catapultou minha mente para outras tantas manifestações na história humana que têm como astro absoluto o pão.
Esse bendito pão tem seus princípios arraigados na simplicidade do trigo moído, misturado com água e um tiquinho de sal. Nessa simplicidade, temos o “pão árabe”, o “pão sírio”, o “pão pita”. Evidente que a nomenclatura já define a região do mundo em que surgiu e se perpetuou. Imprescindível referir aqui o que nos é lembrado cotidianamente, a qualquer hora do dia ou noite, quando deparamos com um quadro da “Santa Ceia”, onde Jesus reparte o pão e dele diz: “… é meu corpo …”. Prefiro intuir que o pão, mais que o corpo, é vida.
Em relação ao “pão pita”, anotamos nesse pão uma variação que mais rapidamente conquistaria o gosto de pessoas de todo o mundo, e que chamamos “pizza”. Desnecessário dizer a origem, mas necessário dizer o modo: soldados assavam essa espécie de pão sobre seus escudos. Dos escudos e da simplicidade, com algum tempero se fez focaccia, e la bella Napoli anota a cobertura a partir de 1520, mas sempre é bom lembrar que por essa época não havia tomate na Europa, a qual se renderia definitivamente ao delicioso molho “di pomodoro” após o século XVI. Aliás, rendemo-nos todos, e inventamos mil e uma coberturas.
Entretanto, a base dessa delícia continua a evoluir por outro caminho radical, onde a raiz é o pão. E faz sucesso não só na Itália, como em toda a Europa, propícia à produção do trigo. Nesse contexto geográfico, vamos encontrar a quintessência da arte da panificação na sofisticada França. Também de lá é a frase: “Se não têm pão, que comam brioche”, dita por algum governante da época e que a história perpetuou erroneamente na boca de Maria Antonieta. Bem, perpetuada está a frase.
Mas, nessa hora bendita em que me delicio com uma “grossa fatia de pão”, não o faço à francesa, mas naquele modo universal da fome, enquanto me admiro com a posterior evolução do bendito pão nosso de cada dia, que se fez focaccia, pizza, evoluiu em forma, tamanho, recheios, coberturas e modos, desembocando em nosso tão degustado pão francês que, em verdade, é português.
Contudo, o mais impressionante é a visão hodierna sobre o pão: já se busca o pão sem os acréscimos posteriores à sua simplicidade inicial, com desprezo à gordura, aos ovos, ao açúcar, ao sal, ao fermento… ao glúten, alma aglutinante do trigo. Com minha mente perquiridora, deparo com um quadro no mínimo estranho: um fiel celíaco frente à hóstia: “tem glúten, padre?”.
Varro, quase instantaneamente, a imagem para o departamento do “não é da sua conta” e fixo minha atenção no bocado que degusto, composto de oito diferentes grãos, e mais uns tantos temperos, tendo chegado a fineza da artista a incluir na receita “um tantinho de páprica e um bocadinho de açafrão” para dar cor. E aquela cor morena do pão me invade os olhos e o aroma do pão me invade as narinas, enquanto a maciez firme desse pão ancestral me acaricia o tato, mas, o que mais fortemente me adentra e definitivamente passa a fazer parte de mim é o bocado de pão com sabor de vida: minha hóstia dessa manhã bendita.
OSMAR CASAGRANDE
É escritor, poeta, membro da Academia Palmense de Letras – Cadeira 10.