Dentre tantas belezas que a primavera nos traz, incluo os sentimentos de infância vivida no interior onde essa estação se faz mas evidente e bela. Mesmo tratando-se de uma crônica já publicada em outro veículo de comunicação, o momento que vivemos me estimula a trazer esta crônica para este espaço tão especial.
Se não bastasse as graças que recebo a cada dia, tenho mais a agradecer do que reclamar ou lamentar em vista dos pequenos percalços que são inerentes a quem sempre a enfrentou a vida com determinação e coragem desde muito cedo, tirando lições e escalando degraus no palco desta nossa passagem humana.
Disse o poeta Carlos Drummond de Andrade que o homem tem o dom de trazer no paladar a sua infância. Eu ousaria acrescentar que a infância está intrinsicamente ligada não somente ao sentido do paladar, mas e também, ao olfato, tato, visão e audição. É exatamente através deles que carregamos por onde vamos ou estamos, tudo que se passou em nossa vida, em especial do tempo de criança.
Quem ao degustar uma fruta, sentir o seu cheiro característico e incomparável, ver a natureza como um todo, apalpar algo que foi nosso na infância, não se transporta para aquela época em que éramos felizes por completo e não tínhamos a exata consciência disso?
Como a Divina Sabedoria é simples e ao mesmo tempo imensa e sábia em tudo que nos oferece!
Nesta bela estação da primavera que estamos vivendo, a mais bela do ano, todos os sentidos de aguçam, em especial a audição, quando ouvimos o canto das cigarras, o barulho dos primeiros trovões, e no meu caso, por residir próximo a um parque ecológico, embora situado no burburinho do trânsito da uma grande cidade, nas madrugadas me deleito ouvindo o canto da saracura, saracura-três potes ou galinha d’água, denominações dadas dependendo da região. Quem já residiu no interior, num sítio, numa fazendo ou à beira de um riacho sabe do que estou falando e quem não sabe, sugiro pesquisar sobre essa ave no dr. Google. Esta encantadora ave tem a característica de cantar, especialmente nas madrugadas, cujo canto, que na crença popular significa chamando chuva.
Ao tempo que me embeveço com seu canto, me vem à memória fatos inusitados acontecidos na minha na minha infância, dentre eles o que me ocorreu recordar há poucos dias: Em minha querida primeira terra mãe, antigo São José do Duro, hoje Dianópolis (Go/To), incrustada ao pé da magnífica e incomparável Serra Geral, que lhe empresta uma paisagem de cartão postal e faz divisa do com o Estado da Bahia, havia um curso d’água denominado Córrego Getúlio, que na minha visão e percepção de criança se tratava da divisa da minha terra com o resto do mundo. Digo havia porquê hoje, daquele riacho vemos tão somente uma vala margeada por belas árvores que resistem em assinar o atestado de óbito do seu curso de água que durante muitos tempo proporcionou alegria e diversão para tantas gerações.
Mas quem sabe um dia, algum administrador de visão mais abrangente possa promover a sua recuperação e revitalização, o que é plenamente possível com as novas técnicas?
Mas a propósito, aquele córrego e as galinhas d’água que lá proliferavam e os episódios que proporcionavam ao nosso mundo infantil, um se destaca e que envolve o primo Dante Póvoa e os amigos de infância, Confúcio e Antônio Nobel Moura. A residência de Dante estava numa grande praça, aliás, uma das duas únicas que existiam na época e que não estava muito distante da rua onde moravam os outros dois que eram irmãos e que dava acesso à uma trilha margeada por malvas e capim, e que lá mais adiante, após uma íngreme descida, corria suave e refrescante volume d’água como descrito acima.
Os três estabeleceram uma sociedade, que não era S/A, muito menos Ltda, de armarem arapucas para captura de galinhas d’água, que por lá eram muitas. Ao cair das tardes providenciavam as respectivas armadilhas, em torno de duas ou três, com a certeza de que na manhã seguinte a colheita seria certa e farta. Ocorre que os dias passavam e Dante nunca obtinha êxito com suas arapucas. Chegando sempre um pouco mais tarde, encontrava, constantemente, as armadilhas vazias e armadas como se ave alguma ao menos houvesse passado por perto.
Muito esperto, Dante era daqueles que dava um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela. Certa feita o mesmo Dante resolveu madrugar por lá para saber o que estava acontecendo. Escondeu-se numa moita de capim, já próximo do local principal. Dito e feito. Flagrante perfeito e bem-sucedido. Rápido como um felino, saltou em frente aos dois irmãos e deu o alarme. Na desabalada corrida que os dois irmãos empreenderam, Confúcio ficou para trás, talvez por ser mais gordinho e de consequência um pouco mais lento. Enquanto isso o Antônio Nobel já desaparecia lá na frente ruma à sua casa. Então o acerto foi feito entre os dois remanescentes, Dante e Confúcio. E entre tapas e safanões a saracura escapou e nunca mais foi vista. Ali mesmo estava desfeita a sociedade.
Hoje meu primo Dante Póvoa reside em Palmas, aposentado após 35 anos de serviços prestados ao Senado Federal. Antônio Nobel, respeitado profissional da medicina em Rondônia por onde foi Deputado Federal e Confúcio, também médico em Rondônia, ex-prefeito de Ariquemes, ex-Deputado Federal, Governador por dois mandatos e agora Senador pelo mesmo Estado.
E o mais inusitado é o que conta o primo Dante: Quando ainda servidor público, certa vez encontrando-se com o Confúcio nos corredores da Câmara Federal, este, em tom de brincadeira lhe disse: – Não me esqueci dos safanões que levei às margens do Córrego Getúlio naquela época das arapucas e galinhas d’água. Quem sabe esta é a oportunidade da minha forra? No que retrucou Dante: – Do jeito que você quiser, primo! Boas gargalhadas, um abraço fraternal entre ambos e a conversa enveredou para casos e mais casos, trazendo reminiscências para ambos e que envolveram todos nós em nossas infâncias na nossa querida terra natal.
“Quem tem ouvidos que ouça, quem tem olhos que veja!”
JOSÉ CÂNDIDO PÓVOA
É poeta, escritor e advogado; membro-fundador da Academia de Letras de Dianópolis.
candido.povoa23@gmail.com