Quem tem pais idosos, morando sozinhos, sabe a apreensão que dá quando se pensa nos riscos. Todos os dias, deitam-se aliviados, suspirando resignados por saberem que os “seus velhos”, como se referem carinhosamente a eles, estão guardadinhos em casa, em segurança, cumprindo isolamento social.
Uma grande amiga e vizinha conta que todos os dias, desde o início da pandemia, a mãezinha tem ficado quietinha em casa, não saindo para nada. Isolamento total. E como a mãe mora sozinha, faz todas as compras de supermercados em aplicativos. Remédios, a farmácia entrega. Enfim, minha amiga está apreensiva, mas confiante de que a mãe está se cuidando. Para falar a verdade, explica, ela só desce de três em três dias, para colocar o lixo nas lixeiras, na área de coleta do condomínio em que mora.
São tempos difíceis. O cotidiano requer cuidados constantes.
Como também sou amigo da mãezinha dela, telefonei para conversarmos um pouco e saber como estão as coisas. Viúva, morando sozinha em outro estado, nesse período crítico da pandemia, é possível que a solidão a assalta vez ou outra.
No telefone, acho-a um pouco afoita, mais do que o costume. Depois de saber notícias das dores e das alegrias da velhice, do corpo e da alma, de falar sobre estatísticas, sobre receitas de bolo, sobre futricas de programas de entretenimento, sobre esperança e clima, veio a novidade: Cochichando, ela conta que está muito comportadinha em casa. Não sai para nada. Só para descartar o lixo. E, com uma nota de deleite nas palavras, explica que três vezes por semana desce, pontualmente, às seis horas da manhã, porque nesse horário os elevadores estão vazios, sem tumulto. Portanto, menos riscos. Cochichando mais ainda, conta que conheceu um morador, um senhor do apartamento 1915, da torre ao lado.
Eu, romântico, insisto que me conte tudo, porque fui tomado pela alegria genuína que ela deixa transparecer nas palavras.
Ela me confidencia que começou em janeiro, quando organizou o seu lixo, levando-o para descartar e, também, um broche velho. Estava lá, parada, com o broche na mão, em dúvida para qual lixeira ele iria. Metal, tecido ou plástico? Tinha de tudo um pouco pregado naquele alfinete. O senhor do 1915, com a sua sacolinha cheia de orgânicos, pensando em tratar-se de uma joia, oferece-lhe ajuda, perguntando se era um broche.
Minha amiga responde, corando, que sim. O cavalheiro indaga se quer ajuda para prendê-lo. No impulso, sacode a cabeça afirmando.
Ele, então, descarta o lixo que levava e, com as mãos um pouco trêmulas, encharcadas com álcool, prende o broche velho na gola do vestido dela, de poá azul.
Ela conta tudo, entre suspiros e risadas soltas. Era uma felicidade essa pequena mudança no cotidiano fatídico. Broche pregado, despedem-se. E desde então, encontram-se por alguns minutos na área das lixeiras, com distanciamento, assegura ela.
E o romantismo? Pergunto, afoito.
Qual! Incrementam como podem. Perguntam da saúde, um do outro. Vez ou outra, trocam um embrulhinho com algum quitute. Noutro dia, ele levou-lhe uma rosa vermelha, que ela, prudentemente, regou com muito álcool. Quisera fosse vinho! Lamentou ela chorosa. Recomendam sempre que se cuidem. E sobem para os seus apartamentos, seguros, onde esperam pequenos sopros de normalidade.
De três em três dias, pontualmente às seis horas, o interfone chama. A voz excitada pergunta: “A gente se vê na lixeira?”
Numa nuvem de perfume, máscara no rosto, frasco de álcool numa mão, o saco de lixo na outra, o velho broche alcoviteiro preso à gola, a voz pingando inocência e prazer, ela confirma: – Estou indo, meu amor!
LITA MARIA
É escritora e membro da Academia Palmense de Letras – Cadeira 19
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