Fé, saberes tradicionais passados de geração em geração e respeito pela natureza, trouxeram o título de Doutora para Noemi Ribeiro da Silva, de 65 anos, filha de Dona Miúda, personalidade icônica do Povoado do Mumbuca, comunidade quilombola localizada em Mateiros, na região do Jalapão. Com esta personagem, finalizamos a série de reportagens Mulheres do Tocantins, em referência ao mês das mulheres.
A famosa Doutora do Mumbuca compartilhou a sua história, a origem dos seus saberes que repassados de geração em geração e com inspiração divina a ajudou a cuidar da sua comunidade. Com uma história de luta difícil e sofrida, Noemi Ribeiro conta como começou a história de seu povoado e como ele se perpetua até hoje com as suas tradições.
“Esse povo do Mumbuca veio da Bahia, correndo de uma situação de vida difícil. Quando o povo chegou nesse lugar aqui estava vazio, e quando chegaram viram que tinha água boa, terra boa, por aqui ficaram, e foi caçando jeito para morar de verdade. Não tinha médico para ajudar a ganhar neném, ou para curar picada de cobra, era só Deus para proteger a gente. A gente conta a história mas parece que nem é verdadeira, pelo passado ser muito dolorido, mas como o Mumbuca era um povoado que tinha muita fé e coragem, venceu tudo isso”, ressalta.
Para superar as adversidades, a natureza e os saberes tradicionais foram os principais aliados. Saberes repassados desde a sua bisavó, até chegar na sua mãe, Dona Miúda, fizeram com que a Doutora fizesse o seu primeiro atendimento aos nove anos de idade. Com base no saber que tinha e por inspiração divina, a Doutora restabeleceu a saúde do seu pai com alfavaca.
“Quando eu tinha nove anos de idade, meu pai adoeceu do olho, ele passou dias sem trabalhar. Quando nasceu o dia, eu fui no quarto do meu pai e ele estava com o olho vermelho. Nesse dia, em um silêncio com Deus, eu fui no quintal da minha mãe e lá tinha um monte de ervas que minha mãe plantava, nessa época não tinha médico não, e Deus deu a instrução na minha mente. Eu peguei uma alfavaca, coloquei no fogo para cozinhar, para lavar o olho do meu pai, só no silêncio, sem ninguém me explicar, a não ser Deus na minha mente. Eu fui no quarto e disse ‘pai levanta aí’ e ele ‘minha filha que chá é esse? Quem te falou?’ Aí eu ‘ninguém pai’. Daí eu lavei o olho dele, bem lavadinho. Quando foi no outro dia, que eu levantei da minha cama, a primeira pessoa que eu vi foi meu pai, com o olho bom, normal. E aí ele falou ‘vem cá minha filha’, e ele me abraçou, me beijou e falou ‘minha filha valeu, eu vou botar você para estudar de verdade para ser uma doutora’. Mas naquela época era muito difícil estudar. Meu pai contou a história para todos os conhecidos e dizia que tinha uma doutora em casa, e aí as pessoas começaram a me chamar de doutora”, relata.
Questionada sobre os tipos de atendimento que a Doutora realiza, ela explica que faz de tudo mesmo, até não dá mais e precisar levar para um médico, mas sempre relata que tudo o que ela usa é o que o Cerrado lhe oferece. “Eu uso tudinho o que o Cerrado dá, as cascas, sambaíba, barbatimão e o buriti. E o óleo de buriti resolve mesmo para picada de cobra, ele espanta o veneno da bicha fera!”.
Cerrado
“Uma cobra pica uma pessoa, Deus me livre! Você vai onde? No Cerrado. Então porque maltratar o Cerrado? A situação da mente do homem, a computação da mente não adota essa atitude que não pode maltratar o Cerrado. Como ele [o Cerrado] alegra a nossa vida, nós temos que alegrar ele no respeito. Fico triste quando vejo a natureza maltratada e judiada demais, um pau, um pé de buriti cortado sem precisão, o capim dourado puxado de qualquer maneira. O olho grande em cima, o dinheiro em primeiro lugar, é falta de caráter do ser humano”, ressalta a Doutora com indignação ao falar do descuido do ser humano com o bioma.
A Doutora relata que a sua mãe já avisava que um dia o capim iria acabar e que essa é uma preocupação da comunidade, por que além de ser uma fonte de renda para o povoado também é de alegria. “Mamãe falou e está cumprindo, o capim está muito raleado no Cerrado, muito olho gordo em cima disso aí fora de tempo e o campo está ficando vazio. É uma preocupação fundamental com o Mumbuca porque é uma fonte de renda e alegra o povoado. O Mumbuca sofre porque nós vivemos aqui, a nossa vida é compartilhada com o Cerrado, tudo é do Cerrado”, destaca.
Sobre essa relação harmoniosa com o bioma, a Doutora explica que tudo começa com o equilíbrio. “A gente tem um equilíbrio com a lua, quando a lua tá nova a gente não pode mexer não, se não atrasa, fica arranhento o Cerrado. Assim é na madeira para casa, para palha e o olho do buriti , porque se a gente tirou as cascas das ervas na lua boa [lua cheia], ou a raíz, a gente não mexe nela mais não. A gente vai buscar em outro lugar para gente usar, para não maltratar, para assim a natureza ficar florida, enriquecida e alegre”, ressalta.
De geração em geração
“A mãe dela, ia trazendo esse conhecimento, para minha vó Laurinda que era parteira, tecedeira, fiadeira e que passou tudo para mamãe, e ela, passou tudo para mim. E hoje, sou eu que tô passando as coisas para não perder. A mamãe morreu em 2010, a gente achava que a mamãe não ia assim não, ela falava ‘minha filha você tome de conta da bandeira porque o que eu tinha que fazer já fiz’, então essa bandeira hoje é minha”, declara.
A Doutora cheia de conhecimento reconhece a importância de repassar tudo o que sabe para a comunidade, para que o povoado nunca deixe de existir. “A gente não pode deixar de ensinar, porque viver o Mumbuca é viver com o Cerrado, viver com Deus. Então a gente tem que ir ensinando e dando jeito para a nova geração, tenta passar com toda alegria e humildade, assim como nossos antepassados foram e não voltam. A gente que está vivo tem que entregar isso para a essa geração: o Cerrado, as ervas, as madeiras para fazer a casa, o telhado, ensinar o tempo que está bom para colher o capim dourado, ensinar a fiscalizar para não acabar”, conclui. (Da assessoria de imprensa)