Confesso que não sei a quem recorrer, se à terapia ou às pedras colocadas no casaco dela; se aos seus característicos pontos e vírgulas; se à melancolia ou à infinidade de notícias que alucinam e encharcam minha mente e corpo todas as horas. Começo pedindo desculpas a Virginia Woolf (1882-1941) pelo atrevimento de falar de nosso adoecimento social tocando em seu ensurdecedor ensaio “Sobre Estar Doente (1926)”, um dos vinte e oito textos da escritora britânica que você pode encontrar em “O valor do riso e outros ensaios”, com tradução de Leonardo Fróes.
Virou moda pedir desculpas, retratar-se. E não acho isso errado. É que optamos por romantizar o constrangimento, o desrespeito, a desgraça alheia, a chacota, a galhofa. Nada de estresse. Se errou, pega seu aparelhinho idiota, joga um filtro adequado às circunstâncias e assume. Isso. Assume que errou e fica tudo bem. Outros tempos, Virginia.
Não estamos bem.
Arrisco dizer que já não há mais espaço no navio apocalíptico da soberba, da ignorância e que, logo, logo, afundaremos mais e mais; e mais. Sim, e rindo, todos feitos uns desgraçados. Nem à proa tentamos nos agarrar para nos salvar porque, sabedores de nossa razão e certeza, morreremos engasgados em nossas verdades. E os outros que se fodam. Pelo menos fiz minha parte, reconheci meus erros. Garantirei um terreno fértil no céu. Deus e Exu sabem que me esforcei.
Desculpas, Woolf. Desculpas pela intimidade até. Retrato-me aqui.
Sinto-me um pouco parte do seu casaco, um pouco de cada pedra que você colocou nele, um pouco das águas do Rio Ouse que asfixiou seu corpo. Desculpas por não retratar-me pelas suas melancolias, dores e angústias. Não saberia. É que agora não se fala mais disso. Os outros são, apenas, os outros.
Hoje o trend é citar o câncer que destrói estômagos, registrar em selfies a cama na qual aquela deu seu último suspiro; chorar numa telinha desculpando-se porque não sabia que ser homossexual não era o mesmo que ser assexual; ou que sapatão que é sapatão de verdade jamais usaria salto. Perdemos a alma, Virginia. E você, o corpo.
Apenas nos quatro primeiros meses deste ano (estamos em 2023), segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, foram 17,5 mil violações envolvendo violências sexuais físicas e psíquicas. É pai, sobrinho, tio, vizinho, meio-irmãos (lembra?) estuprando crianças dentro de casa, na escola, na rua, nos becos. Sobre outras velhas novidades, a exemplo da matança de mulheres, LGBTs e de pessoas que voltam do trabalho surpreendidas com o que a gente aprendeu a chamar de “bala perdida”, nem quero me estender. A maioria tinha uma cor diferente mesmo, mas cabe retratação.
A cama do enfermo não é a mesma, os medicamentos são deslegitimados pela ignorância; e o pau, o pau não come apenas cu, buceta e boca de humanos. A gente rir, hoje, porque há a alternativa de comer cu de vaca, e gorda de preferência. E a gente rir.
Retrato-me usando suas suadas palavras: “Aqui nós vamos sozinhos, e achamos até melhor. Contar sempre com solidariedade, estar sempre acompanhado, sempre ser compreendido seria intolerável (…)”.
Livrei-me. Desculpe-me a edição.
A esperança do moribundo morre a cada postagem. E os ratos do caminho, vindos todos do porão do navio, desaguam em outras valas, não no Ouse. E não há nada engraçado nisso.
Termino dizendo que sou, também, parte constitutiva das pedras que a mataram. E sinto muito por isso. Mas já estou produzindo uma nota, retratando-me. Para depois mergulhar.
Ponto e vírgula. Não estamos bem.
RAMIRO BAVIER
É jornalista e servidor público
bavier@gmail.com