Há dezesseis meses vivo numa perplexidade dizímica. Sensação de que a qualquer momento ganharei o reino de Deus e descansarei no eterno. Bobagem. Logo lembro que nunca coloquei um centavo na salva coletora porque sempre desconfiei daquele saco cutucando meu braço enquanto eu orava de olhos fechados na igreja. Sempre achei aquela cena tosca. Então, terreno no eterno já não é uma garantia. Volto pra cama. Covid-19 matando e maltratando a rodo ainda, distanciamento social e eu em casa. Na cama, sempre à noite, sinto um ar estranho, diferente, algo se transformando depois de tudo que pensei, disse, ouvi e senti ao longo do dia.
Agora quero fofocar. No parlatório midiático, vejo Lula ressurgir feito um punheteiro atirando pra tudo que é lado depois que o STF anulou as ações penais contra ele (no âmbito da Lava Jato/Curitiba); Bolsonaro, o mesmo escroque cuspindo aquela borra nojenta pelo sul da Antártida brasileira (só Jesus nessa causa); o Sérgio Moro, graças, vacinado contra a Covid nos EUA; e eu, em casa, morrendo de inveja dos americanos. Inveja, inveja mesmo, sem cor, pra não dizerem que sou racista. Pena que minha TV começou a estourar o som, minha máquina de lavar a fazer um barulho esquisito e a pular, e meu celular, travando, porque preciso trocá-lo há pelo menos uns três anos. Mas continuo em casa.
Agora, na sala, sinto de novo esse ar estranho em meu rosto. Será uma entidade querendo me dar algum sinal dos tempos? Allan Kardec me adiantando algumas novas questões para uma reedição de O Livro dos Espíritos? Um Preto Velho me pedindo cachaça enquanto me deixa em êxtase adiantando o que vou encontrar ano que vem? Ou o ar de uma pombagira me garantindo, minimamente, uns sete machos pelas próximas duas semanas em minha cama? Meu sonho!
Não sei. Há algo de estranho no ar.
No meio dessa bagunça toda, lembro-me da obra “Deus – um delírio” (2007, Companhia das Letras), do zoólogo e assumidamente ateu Richard Dawkins (1941). Inclusive, quase que ele me torna ateu depois de lê-lo. No sétimo capítulo do livro, por exemplo, Dawkins fala sobre o Zeitgeist (termo alemão que significa ‘espírito do tempo’) para fazer referências a mudanças que ocorrem na sociedade, resultado de “um consenso meio misterioso que muda ao longo das décadas”. Pensei: será o Zeitgeist trazendo o Lula? Um Bolsonaro reencarnado, alfabetizado, com a capa do bem e de boca limpa? Um Sérgio Moro imparcial lutando contra a variante de Manaus, mas firme na fila aguardando sua vez?
Deixemos as paráfrases e metáforas no lugar delas. Minhas maldades também. O ar agora está no minúsculo corredor do meu apartamento.
Sem qualquer paixão ao falar do ex-presidente Lula, por quem ainda nutro ressalvas, não há como negar: o cara irrita, é metido, narcísico, mas inteligente e do bem. Tirando o sítio de Atibaia e o Triplex do Guarujá o que é que o cara pegou, gente? Melhor calar, usar o corpo, a linguagem não verbal e fazer igual Michelle Bolsonaro que tem pegado uma bolada daquelas investindo em Libras. Inteligente, também. Mas é má.
O ar sobre o qual falo não precisa de saturação. Continuo em casa, ainda com medo disso tudo, pois segundo o mesmo Dawkins, “o Zeitgeist muda, de uma forma tão inexorável, que às vezes esquecemos que a mudança é em si um fenômeno”. Vivemos tempos de ditadura. Dos que ditam.
E Lula, não ditava? Era o Zeitgeist da época. Paciência!
E Bolsonaro, não dita? É o Zeitgeist de agora. Paciência! Ainda faltam, pelo menos, umas dezenas de mil morrerem. E daí?
Em 2002, o Zeitgeist também era outro. Lula não mais queria morrer na praia e repetir as derrotas de 1989, 1994 e 1998 ao Palácio do Planalto. Cravou, assim, 2002 e 2006. O que viria bem depois, se você é adepto do zap-zap, sabe. Tempos sombrios.
O que nos reserva o espírito do tempo para 2022? Por falar nisso, você percebe que algo está mudando novamente? Não arrisco em mim. Sem paga, sem terreno no eterno! Pombagira me livre dessa!
Arrisco num Lula sem a necessidade de partido político. Num Lula não candidato, mas referencial e apontando novos caminhos. Penso que o Lula é muito mais do que aquilo que a gente pensa saber.
Arrisco num Bolsonaro ainda estrebuchando na fila com medo de tomar a vacina, mas já de malas prontas. Tomara que eu acerte! Arrisco num Brasil com educação, saúde, emprego, segurança, ciência, arte e comida na mesa todos os dias. E o principal: gente feito gente disposta a tudo isso Enfim, arrisco num novo Zeitgeist.
Estou deitado, agora. A janela do meu quarto bate forte com o ar. Tomo meu remédio. E espero. Para não dormir.
RAMIRO BAVIER
É jornalista em Palmas
bavier@gmail.com