Enquanto engulo o último gole de café na cozinha, meu primo cai ao meu lado com uma bala perdida na cabeça. Na sala, pego minha filha no sofá pra levá-la pra cama e percebo que seu pijama está encharcado de sangue. Tento fechar a porta, e não há. Começo a gritar por minha esposa. Da janela do corredor que dá pra escada vejo ela caída e banhada com a mesma cor da menina. O quarto gira, gira, gira e eu tento acordar a outra. Alguém me acorda. Graças a Deus era só um pesadelo, pensei, suado! O senhor é o seu Antônio? Sim. Eu sinto muito, mas morreu um monte de gente esta manhã e o senhor vai ter que me acompanhar até a delegacia.
Eu estava acordado. Era tudo verdade.
Não vou reproduzir aqui dados estatísticos da violência no Brasil, seja ela praticada por qualquer fator: desemprego, fome, desigualdades sociais, misoginia, xenofobia, racismo, feminicídio, LGBTfobia e tantos outros. Pausa. Agora quem está falando sou eu, não mais o Antônio, o personagem vivo do trecho anterior. Basta dizer que de cada 100 pessoas vítimas de mortes violentas neste país, 75 são negras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E enquanto escrevo, sei que esses números avançam. Eu sei porque estou vivo, e branco.
A pergunta: você lembra o momento exato em que foi corrompido?
Em “O dono do morro – um homem e a batalha pelo Rio” (Companhia das Letras, 2016), o jornalista e historiador britânico Misha Glenny traz uma verdadeira radiografia do caos de uma das maiores cidades do país entremeada com a história da ascensão e queda de “Nem”, ex-chefe do tráfico da favela da Rocinha. Um dos livros mais fodas que já li na vida e acho que vocês deveriam ler. A obra mostra as razões (não sei se o termo mais apropriado seria este) que teriam levado Antônio Francisco Bonfim Lopes a subir o morro como um jovem de 24 anos, trabalhador, exemplar e pai de família, e a descer como “Nem”, tido como um dos maiores bandidos não somente do Rio de Janeiro, mas do país. A narrativa faz provocações e revelações bem pertinentes. Também fala muito de nós.
Minha intenção não é resenhar o livro. A provocação fica por conta das nossas posturas cotidianas para justificar, se não para os outros, para nós mesmos, nossos momentos de corrompimento. Todos temos. Digo isso sem medo de errar. O bom é que a etimologia das palavras, de alguma forma, acaba nos salvando, arrumando termos pra tudo, inclusive pra encobrir e eufemizar nossos atos e intenções cheios de sujeiras. Dependendo do local, da personalidade, da instituição, do número de seguidores, da roupa que se está vestido e da geração do smartphone, logo começamos a relativizar. Ninguém é bobo nem nada.
De acordo com o Dicionário Michaelis, corrupção significa: 4. “Degradação de valores morais ou dos costumes; devassidão; depravação.” Fato é que a gente aprendeu, desde muito cedo, a associar corrupção somente à política, aos governos, às autoridades, nunca a nós mesmos. Como algo de origem externa, e nunca a partir de nós. Alguns questionamentos: se também sou resultado e sofro influências desse mundo externo, de quem seria a culpa? Há culpados? Quem cedeu a quem? Os Estudos Culturais seriam um bom caminho para apontamentos, mas melhor mesmo é jogar tudo nos peitos de Deus, que tudo sabe e tudo vê. Pobre de Deus, deve tá bufando de tanto escárnio.
Você tá pensando ainda em que ponto exato você deixou-se corromper? O texto tá acabando. E nem tente se esconder! Oxalá tudo vê!
Segundo a ONG Transparência Brasil (2021), o Brasil emplacou 38 pontos no Índice de Percepção da Corrupção (IPC). Nota igual a 2020, mas tendo caído duas posições no ranking mundial, ficando em 96º lugar. A média global, de acordo com o IPC, é de 43 pontos numa escala de 0 a 100, onde 0 significa o país “altamente corrupto”; e 100, o “muito íntegro”. Valores abaixo de 50 indicam “níveis graves de corrupção”. É o nosso caso. Os dados você encontra em www.transparenciainternacional.org.br/ipc/
Esquecendo o IPC um pouquinho, quero confidenciar que os dados do parágrafo anterior são somente para dar um up à escrita, uma vez que não acompanhei a metodologia de monitoramento nenhum. Mas deixa pra lá, porque isso depois de dois, três dias as pessoas esquecem e já estamos em ano eleitoral, o pau comendo e a gente só querendo sair bem na foto. Etimologia, Michaelis, ONGs… às favas. Agora só quero saber mesmo o que vai caber a mim. Dependendo da proposta, de quem seja, de onde ela seja feita, que não resulte num viral cruel nas redes e ainda sirva para afastar um bando de gente chata que quero ver longe de mim, eu tô dentro! Eu topo.
Esta semana mesmo usei o dinheiro da terapia pra levar meu anjo da guarda ao oftalmologista. Anda vendo coisas demais e pedi pro médico dar uma exagerada no grau. Consegui. E não adianta dizer que o seu anjo vê o que eu faço, porque anjo da guarda é igual cu. Cada um tem e cuide do seu. É igual pé, cada um sabe onde o calo aperta e dói. O coitado saiu do consultório tropeçando em tudo, inclusive em mim. Hoje ele mais fica deitado do que me observa e protege.
Pensando aqui que o IPC não levou em conta esses dados, mas o próprio IBGE já anunciou que pode cancelar o Censo Demográfico 2022 caso tenha que incluir no questionário informações sobre a orientação sexual das pessoas. Imagina! Perguntar se alguém gosta mais de uma perereca, um pau, um cu ou o que diz gostar?! Isso seria uma depravação, uma devassidão! Salve, Michaelis! Corromper essa realidade é apenas um detalhe, uma vez que estaríamos superestimando a genitália em detrimento do desejo. Isso sem falar nos 33,1 milhões de brasileiros que passam fome hoje, conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Esse número dá três Cubas, ou uma Venezuela. Tá achando ruim? Vai pra Cuba! Continua achando ruim? Vai pra Venezuela!
Antônio chegou à delegacia ofegante. Não conseguia chorar. Pois é, seu… seu… Antônio. Meu nome é Antônio. Eu sinto muito mas o senhor deve também deixar a casa onde mora, proprietário já esteve aqui e pediu ajuda pra não o deixar mais no imóvel. Quatro meses de atraso… Sinto muito, o senhor pode ir ao IML para as formalidades e assinar aqui antes, por favor.
Eu tinha uma outra filha. Já estava desempregado há meses pra poder, com o dinheiro da rescisão, pagar uma porrada de dívidas. Ainda tinha na cabeça o resultado do exame feito na minha outra menina, a que tentei acordar enquanto o quarto girava. Biópsia deu ruim pra caralho. Só com muito dinheiro, e agindo rápido, eu poderia salvá-la. O sol a pino. Dobrei a esquina e avistei o morro. Engoli seco e subi.
E você, lembra exatamente a hora que teve que estar no pico do morro pra sobreviver? Consegue lembrar? Pois tente.
RAMIRO BAVIER
É jornalista e servidor público
bavier@gmail.com