Querido Papai Noel,
O ano vai terminando e venho por meio desta para dizer que, pessoalmente, não tenho nada a lhe pedir. À vida, só agradeço. Recebi imensamente mais do que até mereço. Considero-me totalmente realizado e, se as coisas continuarem como estão, para mim, me basta. Mas, caro Bom Velhinho, infelizmente sei que faço parte de uma minúscula exceção, e meu desejo mesmo é que todo irmão e irmã pelo Brasil e mundo afora possam desfrutar das bençãos com as quais fui agraciado.
Agora que a maioria da população resolveu no voto nos trazer de volta à realidade de um século cujo conhecimento efervesce, acredito que o senhor deve sobrevoar novamente nossas casas na noite de Natal, após o interregno de três anos.
Na verdade, estávamos com saudades de poder recebê-lo, mas não o condeno por sua ausência, nem a das autoridades mundiais que evitaram o Brasil nesses tempos de obscurantismo. Até porque, se pudesse, teria também tirado uns anos sabáticos, para esperar passar essa espécie de delirium tremens coletivo que tomou grande parte dos brasileiros. Vocês, nórdicos, viveram as agruras da Idade Média e, por isso, compreendo perfeitamente que não queiram revisitar aqueles períodos de insanidade e obtusidade que se reproduziram neste Brasil anacrônico, que estava no século 21, mas com mentalidade do século 10.
Mas não vou mentir ao senhor, dizendo que já está tudo resolvido, que estamos plenamente reincorporados ao zeitgeist desta época de inclusão, diversidade e democracia, sob o risco de ficar com essa mancha em minha ficha aí no Polo Norte. Jamais me submeteria a tamanha conspurcação. Também tentar enganá-lo seria tolice de minha parte porque sei que faz uso das redes sociais e que, numa postagem, recentemente, para um shopping de Santa Catarina, foi alvo de um magote desses aloprados de mentalidade medieval que se espraiam pelo Brasil nestes dias e, por conta de sua tradicional roupa vermelha, foi chamado de “comunista” e “petista”.
Assim, querido Noel, tenho que admitir que uma parcela pequena mas significativa de brasileiros aluados continua achando que vive na Idade das Trevas, com suas crendices, submersa numa ignorância que lhe torna presa de todas mistificações engendradas para mantê-la num universo paralelo. Alheia à realidade que a cerca, essa gente é usada nos joguetes de poder de quem opera o projeto político que pretende nos reter no obscurantismo.
Meu Bom Velhinho, não resta dúvida de que isso é resultado do fato de nossa elite cruel e egoísta ter negado ao nosso povo uma educação de qualidade que permitisse o desenvolvimento de uma racionalidade crítica e o impedisse de se tornar hoje facilmente refém de toda burla disparada por redes sociais.
Passo a relatar alguns casos apenas, dos últimos dias, mas peço que tente não rir, porque é engraçado mas também de dar pena. Também não me julgue mentiroso diante dos absurdos a seguir, pois jamais falsearia os fatos para personalidade tão boa e santa como o senhor. Acredita que temos vídeos de número considerável de brasileiros cantando o Hino Nacional para um pneu? Reforço meu singelo mas sincero pedido: tente não rir, mas um grupo, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul – sim, terra de Érico e Luiz Fernando Veríssimo, Sérgio Faraco, Leonel Brizola, Getúlio Vargas e João Goulart –, fez sinais de luz para a estratosfera, com o celular sobre a cabeça, para que os extraterrestres viessem ao seu socorro.
Caríssimo Noel, um caminhão furou esses bloqueios de lesos em rodovias e um deles saltou sobre a frente do veículo, seguindo pendurado por quilômetros, grudado no para-brisa, se recusando a descer. É verdade! Tudo devidamente registrado por câmeras.
Bom Velhinho, as divisas de quartéis por todo o Brasil viraram muros das lamentações. Milhares passam dia e noite por lá, com mãos impostas sobre eles, orando por intervenção militar! Isso mesmo que o senhor está lendo: para contrapor o fim da liberdade que dizem crer que um comunismo fictício e delirante decretará, querem eles acabar antes com a nossa liberdade. Pior, Papai Noel, é que quando há intervenção militar de verdade, com cacetetes e bombas de gás, para liberar rodovias, por exemplo, reclamam. Não é muito contraditório?
Esta semana, querido Noel, numa roda, um dos birutas comunicava que teria sido assinado pelo “sainte” um ato para cancelar a diplomação do “entrante”, que as Forças Armadas já haviam tomado o comando do país e que o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, teria tido a prisão decretada. Sei que o senhor conhece em minúcias nossas peripécias políticas há séculos, por isso, não tenho dúvida de que se alguém lhe repassasse tamanhos desatinos responderia aos trocistas com seu sorriso amoroso de ancião paciente. Contudo, meu Bom Velhinho, as dezenas de pessoas à volta do aluado que usava do microfone aplaudiram euforicamente as “notícias”, como se reais fossem.
Neste momento estão aguardando mais 72 horas por todo o Brasil, que vencem e se renovam desde 30 de outubro, para que “algo aconteça” e permita que o “mito” deles se perpetue no poder.
Dessa forma, se fosse pedir algo neste seu retorno a um Brasil que começa a reingressar à racionalidade do século 21 seria que nos trouxesse algum remédio que fizesse passar o efeito dessa mistura que se revelou bombástica de cloroquina com ivermectina. Afinal, há uma tese em voga de que o abuso permanente desse composto seja o responsável pelo delirium tremens coletivo que lamentavelmente assistimos país afora.
Não quero ser fofoqueiro, mas, como me propus relatar, também é meu dever apontar os responsáveis por esses tempos de profundo obscurantismo, que, por tão perversa ação, não são dignos de receber presente algum na noite de Natal. Encabeça a lista dos responsáveis por esses devaneios medievos que vivemos o “sainte”, depois vêm todos aqueles que se põem como seus porta-vozes e que devem se divertir com a profusão de brasileiros que embarcaram nos desvarios que fabricam num certo gabinete que leva um nome pouco condizente com o espírito natalino: ódio.
Peço por fim, querido Noel, que tome cuidado ao pousar sobre os telhados para não ser flagrado com sua vestimenta vermelha em casa que tenha uma bandeira do Brasil em evidência em sua área externa. Se nessas residências puder trocar por uma roupa verde e amarela será mais seguro para o senhor. Só uma dica para evitar dissabores.
Obrigado por nos dar a chance de provar que estamos voltando à normalidade, à civilidade, à racionalidade, ao século 21. Claro, aos poucos, mas havemos de retomar a vida de antes, e pormos o fim aos tempos de barbárie.
Saudações natalinas.
Cleber