O repórter Walace Lara, da TV Globo, não conteve sua emoção e indignação durante a cobertura da tragédia nas cidades do litoral norte de São Paulo, atingidas por temporais no último fim de semana. A reação incomum do jornalista de não apenas reportar o fato, mas também de interagir sentimentalmente com ele a ponto de chorar, teve motivo. É que conversando com moradores de uma comunidade no município de São Sebastião, descobriu que tem gente vendendo o litro de água por R$ 93,00. O preço dos alimentos também subiu após a cidade ser atingida por fortes chuvas que provocaram deslizamentos, inundações e mortes.
Não é novidade testemunharmos que pessoas buscam vantagens indevidas e, muitas vezes, criminosas, diante de tragédias ocasionadas por fenômenos naturais. Em 2011, a região serrana do Rio de Janeiro foi impactada por temporais que causaram a maior catástrofe climática da história do Brasil. Pelo menos 30 mil pessoas ficaram desalojadas, 918 morreram e 99 estão desaparecidas até hoje. Um relatório do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro na época, colocou em suspeição a prestação de contas dos municípios atingidos, que não comprovaram a utilização de aproximadamente R$ 77 milhões.
Calamidades públicas não são – ou, pelo menos, não deveriam ser -, situações favoráveis para obtenção de vantagens econômicas, mas acontece. Temos visto, na esfera pública e privada, de forma legal ou criminosa, qualquer tipo de crise sendo encarada como pretexto para uma “excelente oportunidade”. Ou seja, pessoas acham que encontraram a chance de mudar de vida explorando tragédias que, justamente, tiram vidas. Isso é muito grave e vai piorar.
Dados do Serviço Geológico do Brasil (SGB) demonstram que existem mais de 13 mil áreas de risco no país, sendo que mais de 4 mil são extremamente perigosas para as populações que as habitam. Os maiores riscos são por conta de deslizamentos, inundações, erosões, enxurradas, quedas e enchentes. Mais de 3,9 milhões de brasileiros vivem nesses locais e são potenciais vítimas dos efeitos das mudanças climáticas, que provocam fenômenos naturais extremos e severos. Os dados, entretanto, podem estar subdimensionados. Isso porque o levantamento do SGB contempla somente 1.600 municípios brasileiros, o que representa menos de um terço dos 5.568 municípios do país.
Um estudo do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que em 2010, o Brasil tinha 8,3 milhões de pessoas vivendo em áreas com risco de desastres naturais. Somente 872 municípios foram monitorados nesse estudo, ou seja, 15% das cidades brasileiras. Certamente, decorridos mais de 12 anos, esses dados também estão defasados.
Se ainda nos faltam fidedignidade no levantamento de informações sobre quantas pessoas podem perder casas, carros, móveis e a vida por conta das mudanças climáticas, o que dirá da disponibilidade de recursos para que essas tragédias sejam evitadas. Dados da Associação Contas Abertas divulgados pela imprensa revelam que o orçamento federal para gestão de riscos e desastres em 2023 é o menor em 14 anos de levantamento da série histórica. Foram destinados R$ 1,17 bilhão para ações de prevenção e atendimento emergencial durante todo o ano.
Não bastasse ter menos recursos que o necessário para atender às situações emergenciais, fazer obras que minimizem as possibilidades de danos e retirar definitivamente as pessoas de áreas de alto risco, a verba disponível não é utilizada em sua integralidade. De acordo com o Contas Abertas, dos R$ 64 bilhões de orçamento autorizados entre 2010 e 2022, apenas R$ 40 bilhões foram empenhados e pagos.
Os dados do SGB, Cemaden e IBGE indicam que o governo deve atualizar urgentemente o diagnóstico das populações que vivem em zonas de perigo. O relatório do Contas Abertas aponta que há de se ter verba disponível e mecanismos que garantam a sua aplicação integral para enfrentar o problema dos desastres naturais no Brasil. Mas e a cobertura da mídia? O que ela nos diz quando vemos um repórter de TV chorar enquanto relata que estão cobrando preços abusivos por água no deserto? O que ela nos revela quando reporta situações de desvios de parte do dinheiro destinado para atender as cidades impactadas por cataclismas?
Estamos cansados de ver o mau-caratismo de pessoas que aproveitam o caos para obter vantagens econômicas. Está na hora de mudar, de inundar-se de empatia e de humanidade. E se não for por vontade própria, por vergonha da audiência que assiste incrédula tanta coisa feia, que seja, pelo menos, por medo de cadeia.
LUIZ MELCHIADES
É jornalista apaixonado por tudo que envolve comunicação e cultura