A política brasileira se deteriorou a tal ponto que vemos a crescente e insana onda dos movimentos que pedem o retorno dos militares ao poder. Esse grupo é composto de um lado por pessoas que acreditam cegamente na moralidade extremada do período em que os generais mandavam e desmandavam. Deles escutamos, por exemplo, que naquela época não havia corrupção. Outro segmento que se empolga com a volta dos militares é formado por jovens que nasceram depois dos anos de chumbo, assim não fazem a mínima ideia do que estão falando.
O tema voltou à pauta do país com a revelação de documento da Agência Central de Inteligência (CIA) que diz que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) autorizou que o Centro de Inteligência do Exército (CIE) continuasse a política de execuções sumárias contra opositores da ditadura militar no Brasil adotadas durante o governo de Emílio Garrastazu Médici, mas que limitasse as execuções aos mais “perigosos subversivos”.
É compreensível o desgaste do sistema político brasileiro, a descrença nos políticos e nas instituições. Na verdade, faz parte de todo o processo de depuração pelo qual o Brasil está passando. O que a Lava Jato e congêneres estão mostrando não é fruto de um período de 13 anos em que um partido populista comandou a nação. O que se desnudou a todo o País é uma prática que pode ter sido até exacerbada nos anos petistas, mas que vinha ocorrendo havia várias décadas.
Na série da Netflix O Mecanismo tem um momento em que o procurador inicia a delação do personagem inspirado no ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa perguntando como tudo começou. O delator, então, responde, irônico: “Começa quando a família real chega ao Brasil em 1808”.
A ironia faz todo sentido. Temos a corrupção enraizada em nossa cultura. E não se engane: a ditadura militar não foi exceção. Claro que havia corrupção, mas com uma diferença abismal: a imprensa estava sob censura. Denunciar naquele período era fatal para jornalistas e jornais. Mesmo que houvesse o império da força, ele também precisava ser mantido com apoio político. Assim, algumas das personalidades da vida pública brasileira de hoje eram base do partido da ditadura, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), que atraía os mesmos fisiologistas de sempre em troca de favores diversos. Uma moeda de troca que surgiu naquele período, como forma de “comprar” apoio, e até hoje funciona assim, são as imorais emendas parlamentares.
[bs-quote quote=”Concordo com a revisão da Lei da Anistia, sem caça às bruxas e que também atinja civis que assassinaram em nome de bandeiras da extrema esquerda, que nunca — repito: nunca — lutou pela democracia no Brasil. Isso é uma enorme falácia” style=”default” align=”left” author_name=”CLEBER TOLEDO” author_job=”É jornalista e editor do CT” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/02/CTAdemir60.jpg”][/bs-quote]
É preciso lembrar a todo momento que muitos inocentes tombaram diante da falta de segurança jurídica para o cidadão. Qualquer oficial de meia pacata no interior do Brasil tinha autoridade sobre a vida e a morte de brasileiros. Era a lei e fazia a lei. Essa ideia de que a ditadura só vitimou “terroristas” não é verdade.
Centenas de homens e mulheres Brasil afora sem nenhum envolvimento com a luta armada foram atingidas. Professores, operários, jornalistas e muitos outros profissionais pagaram com a vida porque não atenderam um capricho de um político influente ou de um militar vaidoso. Não havia instrumentos jurídicos para protegê-los, nem processos legais. Tudo ficava por isso mesmo.
Hoje reúne-se nas ruas por qualquer bandeira e grita-se, inclusive pela volta dos militares. Toda manifestação pacífica é um direito garantido pela Constituição cidadã, esse documento de valor imensurável para as nossas vidas, e não lhe damos a mínima reverência. Mas, acreditem, teve uma época em que qualquer tentativa de falar era sufocada com prisão, tortura e morte.
A democracia é um sistema que exige maturidade da nação e em que a condução do País é compartilhada com toda a sociedade, ao invés de ser exclusividade de um grupelho que se impõe pela força e pelo desrespeito total aos direitos humanos.
Não há menor dúvida de que todo esse clamor insano não encontra eco nas Forças Armadas. Vejo nossos comandantes com um grau de maturidade democrática muito acima de toda essa histeria que reverberou mais forte por conta das redes sociais, que, como sabiamente observou o escritor italiano Umberto Eco, “deram voz a legião de imbecis”.
Como cidadãos, não tenho dúvidas de que os militares estão tão indignados como qualquer brasileiro. Mas não há um só movimento deles para se rasgar a Constituição. Os comandantes de nossas tropas de hoje não têm qualquer relação com o grupo que sublevou e deu o golpe de 1964.
No impeachment do ex-presidente Fernando Collor me lembro que esse mesmo discurso da volta dos militares vinha vez ou outra. Mas as Forças Armadas continuaram cumprindo a importante missão que sabe que tem de guardar a Constituição. Há nos nossos generais hoje muito mais espírito público e democrático do que na classe política e naqueles que pedem a volta dos anos de chumbo.
No entanto, é muito importante tirar o esqueleto do armário, aproveitando que o fantasma dos horrores reapareceu com o documento da CIA revelado semana passada. Concordo com a revisão da Lei da Anistia, sem caça às bruxas e que também atinja civis que assassinaram em nome de bandeiras da extrema esquerda, que nunca — repito: nunca — lutou pela democracia no Brasil. Isso é uma enorme falácia. A obsessão desses grupos era a tal “ditadura do proletariado”. Assim, os abusos de lado a lado precisam ser apurados.
O Brasil tem um dever para com as vítimas civis e militares da ditadura e com o seu futuro de fazer esse encontro com o passado, de forma justa, para lavar a alma e fechar de vez essa ferida que nunca cicatriza.
CT, Palmas, 15 de maio de 2018.