O tema proposto visa levar o leitor a fazer reflexão do que diz o Código Civil em seu artigo 483, parte final, onde está lapidado: “a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório”.
Da leitura do comando legal faz atravessar o pensamento duas situações: – a venda condicionada e a venda definitiva. A condicionada, como o nome indica, é venda de coisa esperada, de vir a existir a coisa vendida. A venda definitiva acontece quando devido o preço mesmo que deixe de vir a existir a coisa, desde que haja previsão expressa da possibilidade de não vir a existir, ou de vir a existir em qualquer quantidade, ou de estar exposta a coisa a risco, em sintonia com o final do dispositivo do Código Civil apontado na introdução.
A compra e venda de safra futura enquadra-se na venda definitiva, onde fica estipulado preço, cujo pagamento, pelo menos em parte, é efetuado antecipadamente, antes mesmo da coisa existir, claro. Nesses contratos prevalece a esperança, o que não pode falhar, pois se falhar, mesmo assim, obriga o adquirente a pagar o preço convencionado, se já não fora feito antecipadamente.
É, quem compra esperança teria que pagar pelos riscos advindos das intempéries, o que não tem acontecido assim de forma tranquila. Agora, quando o sofrido produtor (não é coitado, faz favor) leva contratos agrários para discursão, principalmente com base na teoria da imprevisão, leva chumbo quente, o que não devia. Entretanto, com sorte, consegue convencer os tribunais de que a falta de chuva, por exemplo, é motivo para a revisão, para a resolução, inclusive. No final do texto, o teimoso leitor desta Coluna vai concordar conosco quanto à ideia de que produtor vence uma ação revisional quando brota a sorte, em detrimento das teorias jurídicas.
A revisão, os questionamentos surgem, se acontecerem mudanças radicais no curso da vigência do contrato, como o preço dobrar, triplicar, bem como cair, não ser viável a venda etc.
Exemplo emblemático dos contratos passíveis de revisão judicial, e que é corriqueiro nas regiões produtoras de grãos, são as compras de futuras safras de soja, fixando-se o preço em certo valor, mas que pode duplicar ou ficar em níveis superiores na época da safra, como pode também acontecer de ser o inverso, onde o preço fica a níveis insustentáveis para as partes contratantes, não restando senão a revisão, o que é indicado.
Em se tratando de soja, sendo uma commodities (produtos básicos, cultivados ou extraídos da natureza em grandes quantidades, de qualidade quase uniforme), podendo ser estocada para aguardar o momento certo para a venda, preço que depende da bolsa de valores, tem gerado grandes fortunas para quem atua no ramo, o que tem levado muita gente a comprar terras para o plantio de soja, posto ser um dos melhores investimentos na atualidade.
Sobre esses contratos futuros orbitam inúmeras teorias, mas as que se destacam são três: – a da imprevisão, a da justiça social do contrato e a da boa-fé. A mais importante, e mais discutidas nos tribunais é a da imprevisão, principalmente no caso da soja que depende de chuvas regulares para a boa safra, aquela que faz sorrir quem vendeu antecipadamente e para quem comprou, principalmente quem comprou, no caso as grandes empresas que entram com o dinheiro, o produtor entra com o suor. Coisa parecida se dá na sociedade capital indústria, um entra com o dinheiro o outro com o trabalho, simples assim.
O cerne, o que sustenta esses contratos é estabilidade de condições, preços estáveis, não mudanças substanciais da realidade, ou seja, contrato futuro depende de economia estável, inclusive a mundial, depende de chuvas regulares, no caso da compra de safra futura de soja.
É consabido que o entendimento nos tribunais, mesmo sendo facilmente possível demonstrar nos processos as teorias, notadamente da imprevisão, a maioria esmagadora, é no sentido de que não seja feita qualquer revisão nos contratos.
Abaixo, para melhor compreensão do que fora dito acima, fazemos a transcrição e comparação entre dois julgados do mesmo tribunal em anos diferentes, com entendimentos diferentes sobre a mesma matéria, em casos análogos.
Jurisprudência selecionada 01 – APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTENTE. REQUISITOS PARA EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CERTEZA, LIQUIDEZ E EXIGIBILIDADE. PRESENTES. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. ESTIAGEM. SITUAÇÃO ANORMAL E DE EMERGÊNCIA. PERDA ELEVADA DA PRODUÇÃO DE SOJA. ONEROSIDADE EXCESSIVA. OCORRÊNCIA. MULTA. PERDAS E DANOS. AFASTAMENTO. PRECEDENTE DO C. STJ. PREQUESTIONAMENTO. 1. O título que serve de base à execução proposta, em que se busca o pagamento de cláusula penal, representa obrigação certa, líquida e exigível a amparar a execução (CPC/2015 783 e 784, III). 2. Comprovada a situação anormal ocasionada por severa estiagem que comprometeu a produção da soja e a fim de resguardar o equilíbrio entre as partes contratantes e zelando ainda pela função social do contrato, bem como pela boa fé objetiva, vislumbra-se, no caso concreto, motivo ensejador para resolução do contrato por onerosidade excessiva e por quebra da base objetiva do contrato, sem a imposição de qualquer multa em desfavor do agricultor. Precedente do C. STJ. 3. Deu-se parcial provimento ao apelo do embargante. (TJ-DF 00042111720178070001 DF 0004211-17.2017.8.07.0001, Relator: SÉRGIO ROCHA, Data de Julgamento: 18/03/2020, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 04/05/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Jurisprudência selecionada 02 – APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. COMPRA E VENDA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. CONTRATO ALEATÓRIO. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. VARIAÇÕES CLIMÁTICAS. PERÍODO DE FORTE ESTIAGEM. ALEGAÇÃO DE PERDA DA SAFRA EM DECORRÊNCIA DE CASO FORTUITO OU FORMA MAIOR. DESCABIMENTO. CLÁUSULA EXPRESSA DE ASSUNÇÃO DE TODOS OS RISCOS. ABUSIVIDADE CONTRATUAL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E PROBIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MAJORAÇÃO. CRITÉRIOS NORTEADORES DO § 4º DO ART. 20 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 1. O contrato de compra e venda de safra futura classifica-se como aleatório, pois envolve coisas ou fatos futuros, impondo a assunção do risco por inocorrência destes a uma das partes, e à outra o direito de receber integralmente o prometido, desde que não tenha atuado com dolo ou culpa, conforme preleciona o art. 458 do Código Civil. 2. Os contratos aleatórios de compra e venda de safra futura possuem o risco como elemento intrínseco, logo, não há comutatividade de suas prestações ou quebra do equilíbrio contratual, o que torna inaplicável a eles a teoria da imprevisão. 3. Períodos prolongados de estiagem, fortes chuvas, pragas na lavoura, entre outros, não configuram acontecimentos extraordinários aptos a justificar o inadimplemento contratual, pois são situações previsíveis e até esperadas na agricultura, devendo ser levadas em consideração pelos agricultores antes do plantio, em especial quando contratam a venda para entrega futura com preço certo. 4. O fato de o agricultor assumir com exclusividade os riscos da produção agrícola não representa ofensa aos princípios da boa-fé e da probidade ou, ainda, tentativa de desvio da função social do contrato, mormente porque não se está diante de contrato de consumo ou adesão. 5. Em atenção ao disposto no § 4º do artigo 20 do Código de Processo Civil, o arbitramento dos honorários advocatícios deve refletir não apenas a complexidade da matéria ou o tempo de tramitação do feito, mas, sobretudo, o compromisso ético e científico do patrono com a realização do direito em questão. Honorários advocatícios majorados. 6. Apelações conhecidas, improvido o apelo do autor, provido o apelo da ré para majorar o valor dos honorários advocatícios. (APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. Acórdão 760466, 20120111252472APC, Relator: SIMONE LUCINDO, Revisor: ALFEU MACHADO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 12/2/2014, publicado no DJE: 19/2/2014. Pág.: 86)
A Jurisprudência 01 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, um dos melhores Tribunal do Brasil roubado, espoliado, por toda espécie de larápio, entranhados em todas as esferas, seja Judiciário, Legislativo ou Executivo, indica que é possível sim a resolução contratual quando não foi cumprido por “situação anormal ocasionada por severa estiagem que comprometeu a produção”. Em outras palavras, diz que contratos futuros estão sujeitos a revisão, inclusive a resolução, por fatos futuros, fatos previsíveis. Vejam bem, escrevemos “fatos previsíveis”, pois a estiagem severa é um fato previsível sim, não há agricultor que não saiba disso, as chuvas variam muito de ano a ano. O entendimento do TJDFT hoje, explicitado no Julgado de 2020 é de que estiagem severa é motivo de resolução contratual, mas já foi diferente, como bem notou o leitor astuto, fazendo cotejo entre os dois Julgados transcritos acima.
A Jurisprudência 02, do mesmo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, transcrito acima para comparação, e meter na cabeça dos advogados, que nós trabalhamos como nos contratos futuros, sujeito às intempéries, no caso, as intempéries de entendimento. No Julgado de 2014 do TJDFT, o entendimento era outro, e dolorosamente, o mesmo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, como veio ao mundo no Julgado do Recurso Especial nº 887.716. Em suma, repisando, o advogado também trabalha meio que na sorte. A comparação dos Arestos mostra o que dissemos. Meus pêsames para quem acha que advogar é tarefa fácil.
MARCELO BELARMINO
É advogado, jornalista e técnico agrícola. Atua nos diversos ramos do direito, tendo foco central o direito Agrário o Imobiliário. Também escreve para o portal www.fazendasnaweb.com.br.
advocaciammb@gmail.com