Ano após ano, a questão da regularização fundiária, quer seja em terras devolutas ou particulares, apresenta-se como um problema, e diversas pessoas reclamam de não conseguir obter o título de suas terras. Venhamos e convenhamos, essas reclamações existem desde a descoberta do Brasil e a implementação das primeiras capitanias hereditárias. Mas então, qual seria o problema?
Embora a solução desse problema seja complexa e envolva a necessidade de uma mudança de mentalidade social, estrutura jurídica e política, explicar o problema é, estranhamente, simples, porque essa é uma realidade vivida no dia a dia, não somente pelos profissionais que atuam na linha de frente da regularização fundiária, mas pela população em geral.
Partindo desse pressuposto, em um artigo de opinião, vamos discutir, sob o nosso ponto de vista, qual a origem dessa problemática e de onde deve partir uma reflexão séria no sentido de mudá-la.
Estrutura Política
Desde o princípio, o sistema político, em vez de ser baseado no respeito às liberdades individuais e na preservação do bem do povo, foi baseado em favorecimento, ou seja, na troca de favores entre os mais próximos do poder, e em promessas aos demais que se encontravam no grande contingente social que compunha o Estado.
As promessas de segurança, saúde, educação e terra são a marca que nos acompanha desde o século XIX, e, acreditem, à exceção do contexto social, pouco mudou no tom dos discursos proferidos no palanque.
Então ,observe-se que: qual seria o interesse em se resolver esses problemas se, uma vez sanados, não haveria mais palco para o principal discurso eleitoreiro? Sempre houve um interesse parcial em resolver essas demandas, mas nunca de modo demasiadamente eficiente, para que promessas e negociações eleitorais pudessem continuar a ser feitas.
Por isso, falta infraestrutura nos órgãos responsáveis, faltam servidores, falta praticamente tudo… A culpa é do gestor e da cultura política, não necessariamente do servidor público.
Outra questão é que a complexidade dos sistemas de regularização fundiária aumenta na mesma proporção em que aumenta o acesso da população à informação; logo, a complexidade do sistema diante do preparo do usuário é sempre desigual.
Considerando que a terra sempre foi palco de promessas políticas e troca de favores, o poder público sempre tomou para si a função paternal de regularizar os particulares, sob o pretexto de “dar-lhes terra”, fazendo com que a grande maioria da população acreditasse que isso seria feito de forma espontânea pelo governo e, ainda por cima, sem custo, ou com custo irrisório.
Isso cria dois enormes problemas, pois faz crer, por um lado, aos que trabalham a terra de forma produtiva, que são integralmente dependentes do poder público para se tornarem proprietários e, por outro, que vão receber essa terra do poder público sem fazer o mínimo esforço pessoal para essa finalidade.
Esses problemas estão, sob essa linha de pensamento, de “mentalidade social”, enraizados em nossa sociedade desde os primeiros anos da independência.
Mentalidade Social
Desde a nossa independência em 1822, embora a propriedade privada fosse assegurada pela Constituição Federal, faltava delimitar o que era propriedade, como se adquiria a mesma, quais os meios de regularizá-la e registrá-la para assegurar ordem social ao regime jurídico. Isso trouxe um caos ao campo, pessoas se apossavam livremente de terras em toda parte e compravam e vendiam os “direitos” sobre essas terras por todas as formas imagináveis: contratos particulares, escrituras, procurações, recibos de compra e venda, tudo concatenado em cadeias sucessórias de vários documentos transmitidos de mão em mão, sem um sistema organizacional de registro.
Com isso, o povo se acostumou facilmente: negociavam livremente, não recolhiam impostos, não tinham despesas de registro e compravam e vendiam terras a bel-prazer, sem mediação ou qualquer tipo de cautela. Esse período, que se estendeu da independência até a promulgação da Lei de Terras de 1850, foi chamado de período dos apossamentos, e formou um costume nacional da informalidade sob a pecha de trabalhar com a negociação de terras sem burocracia e a baixo custo. Pouco se sabia ou se preocupava com a propriedade em si, já que nessa época o que tinha valor era a posse.
Poucos sabem, mas antes mesmo de termos um código civil organizado, tivemos uma Lei de Terras, voltada a disciplinar a regularização fundiária sob terras devolutas e, em parte, sob as particulares. Sabe qual problema? Vimos surgir meios de regularização fundiária antes de termos bases firmes de disciplina da propriedade e de seu registro; essa mazela cobra até hoje um preço alto na segurança fundiária nacional.
O primeiro problema de mentalidade está no conforto de uma informalidade que, a princípio, parece sair barato, mas no final custa caro. Quem acha que é esperto ao se emaranhar em negociações de terras enroladas, sem se preocupar em regularizar, está enganado. Quanto mais tempo se espera para regularizar um imóvel, geralmente mais complicado fica: o titular falece, os herdeiros não entram em consenso, as documentações exigidas mudam, o custo muda e, por fim, o imóvel é abandonado.
O segundo problema está na falta de proatividade, de planejar a regularização do imóvel e compreender que ele apenas terá valor de verdade se, além de ser explorado, estiver regular. Sabe por quê? Quando regularizado, você consegue acessar financiamentos para investir no imóvel, consegue ter segurança jurídica para você e sua família, para trabalhar no imóvel ou deixar de herança e, ainda por cima, o imóvel praticamente dobra de valor.
Já imaginou o quanto é ruim “passar um aperto”, como o pessoal diz em Minas Gerais, e não poder recorrer ao banco? E ainda sofrer humilhação na hora de vender um imóvel irregular? Pois é, quem investe numa terra assim sem pensar em regularizar, entra em um jogo de azar perigoso. Agora, já pensou confrontar a criação de um parque? Um projeto de assentamento? Quem é dono luta pela propriedade e, ao menos, pela indenização, e quem não é dono? Aí a situação fica complicada.
É preciso enxergar a regularização fundiária como um investimento vital, isso porque, sem ela, a terra, que é seu maior patrimônio, onde você investiu uma vida inteira de trabalho, não está segura.
O terceiro e último problema é a vitimização do produtor. É necessário que você aprenda a não depender do poder público para tudo, porque no Brasil, o governo é incapaz de concretizar o mínimo dos direitos fundamentais que constam na constituição. Sem nem segurança de qualidade, saúde ou educação digna temos, por que esperar uma regularização fundiária efetiva? Seja você mesmo o protagonista da sua vida, levante-se e, apesar das dificuldades, coloque foco nos seus objetivos, busque bons profissionais, invista com segurança e corra atrás do seu direito de ser dono das suas terras.
Estrutura Jurídica
Pois bem, nossa estrutura jurídica de regularização fundiária tanto de terras particulares, quanto devolutas, é bem estabelecida e de fácil compreensão. Porém, uma verdade que deve ser aceita é que dificilmente você conseguirá regularizar um imóvel sem o apoio técnico e jurídico de um Agrimensor e um Advogado, e em alguns casos, de um Engenheiro Ambiental ou Florestal.
Conduzir um processo de regularização fundiária sozinho é o mesmo que tentar advogar em causa própria, sem nunca ter estudado direito, ou seja, muito provavelmente, não dará certo. No que diz respeito às posses sobre terras particulares, além de uma notável estabilidade herdada do direito romano e adaptada à realidade nacional, com o advento da extrajudicialização,[1] temos um dos sistemas mais modernos do mundo.
Quando o assunto são terras devolutas, na esfera federal as normas mudam muito rápido, conforme a tendência de governo; já na esfera estadual costumam ter mais estabilidade, sendo influenciadas, em maior ou menor grau, pelas mudanças emendadas do governo federal, tomando-se a disciplina do INCRA como exemplo.
Conclusão
A conclusão? A questão da regularização fundiária em solo nacional não avança de modo efetivo, pela soma de diversos fatores. Se, por um lado, é bem nítida a falta de boa vontade do poder público, por outro lado, é evidente também que o cidadão não precisa esperar essa boa vontade para se regularizar. Rompendo o estigma do comodismo, deve buscar por seus próprios meios regularizar suas terras para que consiga, através da propriedade, ter acesso aos meios de tornar esse imóvel produtivo e à segurança de trabalhá-lo, construindo um legado sólido para si mesmo e sua família.
Não devemos considerar a regularização fundiária como uma responsabilidade exclusiva do poder público ou um favor, mas um direito que deve ser perseguido pelo produtor rural, por todos os meios cabíveis.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; membro da Comissão Nacional de Direito Agrário e Agronegócio da OAB; membro Consultor da Comissão Estadual de Direito Agrário e Agronegócio da OAB/TO (2020-2021); membro da Comissão Nacional de Direito Ambiental da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2021-2022); membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2020-2021); especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
Contato Acadêmico: costaneto.jus.adv@gmail.com
[1] a) Possibilidade de usucapião administrativa no novo CPC.
b) CNJ libera inventário com herdeiros menores ou incapazes, e quando houver testamento.
c) É possível vender os bens do Espólio antes do Final do Inventário?
d) Adjudicação Administrativa junto aos Cartórios de Registro de Imóveis: inovação da Lei 14.382/2022