O tema é polêmico, pois parte das áreas em faixa de fronteira, embora possuam registro teoricamente regular e tenham sido tituladas pelos próprios estados onde se situam, estão em vias de ter seus títulos cancelados. Vamos explicar essa situação.
O que é faixa de fronteira?

A faixa de fronteira é a linha terrestre que divide o Brasil de outros países, situada a 150 km (cento e cinquenta quilômetros) da linha de divisa oficial.[1] Essa extensão já variou ao longo da história do nosso país, mas atualmente mantém-se assim por expressa previsão constitucional.
A grande importância atribuída a essas áreas se deve ao fato de serem de especial interesse da União Federal, terras consideradas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental.[2]
Este texto pretende mostrar como nossos constituintes originários foram ambíguos em sua escolha de redação.
A extensão do que é considerado faixa de fronteira oscilou desde 66 km (sessenta e seis quilômetros), quando instituída no período Imperial, até seu limite atual.
Existem apenas terras devolutas na faixa de fronteira?
Não, porque a União sempre transferiu ao particular a propriedade de imóveis situados em faixa de fronteira, ocorrendo isso através de títulos que receberam diversos nomes ao longo da história, atualmente denominados “Títulos de Domínio”.
Inclusive, a própria Lei de Terras de 1850, e seu decreto regulamentar, destinavam essas áreas em especial à concessão de propriedade gratuita a particulares que desejassem explorá-las, sob o pretexto de defender nossas fronteiras terrestres e mantê-las bem delimitadas.
Essa realidade manteve-se ao longo de muitos anos, já que essas áreas eram estratégicas para o estabelecimento de postos de fronteira e fortificações militares, o que também facilitou a povoação dessas regiões. Logo, existem diversos imóveis, tanto urbanos quanto rurais, em faixa de fronteira que são de propriedade privada e estão absolutamente regulares, sendo suscetíveis de compra e venda, alienação ou até mesmo usucapião.
Entretanto, a competência para expedir títulos de propriedade nessas áreas sempre pertenceu ao Império e, posteriormente, à União Federal.[3]
O problema foi que diversos estados, sem competência, ao longo dos anos, expediram títulos de domínio em faixa de fronteira, usurpando competência expressa da Constituição Federal. Essa análise deve ser feita nos termos da Constituição Federal e legislação vigentes ao tempo da expedição do título. Esses títulos, é preciso que o proprietário compreenda, por erro do próprio poder público estadual, são nulos de pleno direito se expedidos dentro da faixa de fronteira, sem autorização da União.
Essa afronta à disposição constitucional e legal acarreta a nulidade absoluta derivada de vício insanável.
É possível titular áreas na faixa de fronteira?
Sim, atualmente é possível titular áreas situadas na faixa de fronteira, desde que esses imóveis estejam localizados em glebas para as quais o Conselho de Defesa Nacional tenha dado expressa anuência, considerando-as aptas à titulação na modalidade de regularização fundiária ou à implementação de projetos de assentamento.
Quem instrumentaliza esses procedimentos é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Este órgão atua na faixa de fronteira com o objetivo de preservar o interesse da União Federal, em áreas que necessitam ser destinadas à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação, e à preservação ambiental.
Atualmente, os estados não possuem competência para transferir a particulares a propriedade sobre terras devolutas nessas regiões, pois, constitucionalmente, não detêm a propriedade de tais terras. Portanto, não podem, da mesma forma, transmitir qualquer propriedade a particulares dentro dessa faixa, salvo se a União já lhes tenha transferido essa titularidade previamente.
Como fica a situação das áreas que foram tituladas de modo ilegítimo pelos estados? O proprietário tem direito à indenização?
Pois bem, é possível regularizar conforme dispõe a Lei n° 13.178/2015, através de um procedimento chamado “ratificação” em alguns casos. Vamos entender essa situação classificando o status dessas áreas.
- Imóveis rurais com origem em títulos de alienação ou de concessão de terras devolutas expedidos pelos Estados em faixa de fronteira não superiores a 15MF (quinze módulos fiscais) devem comprovar:
- Que seu domínio NÃO está sendo questionado nas esferas administrativa ou judicial por órgão ou entidade da administração federal direta e indireta até a data de 22 de junho de 2021
- Que NÃO seja objeto de ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária ajuizadas até a data de 22 de outubro de 2015;
- A certificação do georreferenciamento do imóvel;
- A atualização da inscrição do imóvel no Sistema Nacional de Cadastro Rural;
- Imóveis rurais com origem em títulos de alienação ou de concessão de terras devolutas expedidos pelos Estados em faixa de fronteira superiores a 15MF (quinze módulos fiscais), devem comprovar:
- A certificação do georreferenciamento do imóvel;
- A atualização da inscrição do imóvel no Sistema Nacional de Cadastro Rural;
- Que seu domínio NÃO está sendo questionado nas esferas administrativa ou judicial por órgão ou entidade da administração federal direta e indireta até a data de 22 de junho de 2021;
- Que NÃO seja objeto de ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária ajuizadas até a data de 22 de outubro de 2015;
Inicialmente, a apresentação do Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR) derivada da atualização dos dados cadastrais na base de dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural e do Georreferenciamento era dispensada para imóveis menores que 15MF. Isso mudou com a extensão da obrigatoriedade, a partir de 20 de novembro de 2025, que exige georreferenciamento para imóveis, mesmo que menores de 25ha (vinte e cinco hectares), e a necessidade de vinculação ao CCIR para a certificação do GEO[Atlas 21].
Tornou-se prática comum que os Estados exigissem, em suas normas próprias, a apresentação do Cadastro Ambiental Rural como requisito ao procedimento de ratificação na esfera administrativa cartorial.
Essas regras se estendem por toda a cadeia dominial desses imóveis, abrangendo seus desmembramentos e remembramentos, desde que todos estejam regularmente inscritos no Registro de Imóveis.
Ressaltamos que, na hipótese de haver sobreposição entre a área correspondente ao registro ratificado e a área correspondente a um título de domínio de outro particular, a ratificação não produzirá efeitos na definição de qual direito prevalecerá, fato comum considerando a desorganização de diversos órgãos fundiários estaduais.
Existe um prazo para tomar essas medidas? E quais as consequências de não fazer nada?
Sim, esse prazo se encerra em 22 de outubro de 2015, conforme disposição expressa da Lei n° 13.178/2015.
Os procedimentos, que não envolvem atos de competência do INCRA, são promovidos diretamente pelos cartórios de registro de imóveis do foro de situação da propriedade, o que levou cada estado a editar normas próprias para essa finalidade, obrigando o proprietário a buscar auxílio especializado para tratar da situação. Isso também implica que, na esfera estadual, possam existir outros requisitos impostos para promover os atos de ratificação, como, por exemplo, a apresentação da Certidão Negativa de ITR e a inscrição no Cadastro Ambiental Rural.
Os proprietários que não promoverem esses atos de regularização terão seus imóveis arrecadados sumariamente ao acervo patrimonial da União Federal, mediante o cancelamento de seus registros.[4]. Para se submeterem a uma nova titulação pela União Federal, por intermédio do INCRA, terão que aguardar que as glebas onde se situam essas áreas passem pelo crivo da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, composta por membros[5] do:
- Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, que a coordenará
- Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima;
- Ministério do Meio Ambiente[Atlas 22] ;
- Ministério dos Povos Indígenas;
- Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos;
- INCRA;
- Serviço Florestal Brasileiro;
- Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – Instituto Chico Mendes; e
- Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).
Além disso, enfrentarão o rigor do status das Florestas Públicas, conforme discutido em artigos já publicados: “Consigo titular área sobreposta a Floresta Pública Tipo B pelo INCRA?” e “Foi resolvido o problema das titulações em áreas sobrepostas a Floresta Pública Tipo B”. E do Conselho de Defesa Nacional, também conforme o rito específico, acima já referido. Cabe lembrar que a demanda de áreas para reforma agrária atingiu níveis sem precedentes, e devido à situação do governo, desapropriar e comprar não são as primeiras opções; a arrecadação de terras devolutas, com registros cancelados pela inércia da parte, pode se tornar algo atrativo, conforme determinam os programas “Terra da Gente”[6] e a plataforma “Terras do Brasil”, tema que abordamos em nosso artigo: “Cenário da Reforma Agrária em 2024: Prateleira de Terras e Política Nacional de Ordenação do Território”.
Mas qual é a incoerência?
Simples: como é que uma região em faixa de fronteira pode ser considerada inadequada para a promoção de medidas de regularização fundiária ou para a implementação de projetos de assentamento, e ao mesmo tempo ser destinada à criação de uma área de preservação ambiental sem o mínimo de policiamento da fronteira? Ou como área de interesse militar, permanecendo também abandonada ao descaso do Exército? Ou pior, como área indígena, onde o governo federal não tem controle, nem interessa controlá-la, e a FUNAI se omite diariamente em fiscalizar a preservação dos interesses nacionais, já que isso não seria de sua competência.
Estávamos, a esse respeito, melhor em termos de leis nos tempos do Império. Considero que a faixa de fronteira, exceto onde for objeto da construção de fortificações militares, deve ser amplamente colonizada e policiada por todas as forças disponíveis. O tráfico e contrabando internacional, roubo de veículos e maquinários, tráfico de pessoas e a fuga de criminosos, na grande maioria das vezes, beneficiam-se dessa ineficiência contraditória do poder público em ordenar e promover a colonização dessas áreas por meio da Regularização Fundiária ou do PNRA[Atlas 23] .
Cabe ressaltar que este tópico específico reflete a opinião pessoal do autor deste artigo.
Conclusão
Um dos maiores problemas a esse respeito é o descaso dos proprietários em promover as corretas medidas de regularização; por outro lado, a Lei n° 13.178/2015 transferiu do INCRA para os registros de imóveis grande parte da instrumentalização desse procedimento, criando uma série de normativas difusas a esse respeito que, mesmo balizadas pela Lei n° 6.015/1973, ainda variam muito de estado para estado, o que dificulta ainda mais a disseminação desse procedimento. Acreditamos que menos de quarenta por cento dos imóveis beneficiados pela ratificação serão de fato regularizados.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; membro da Comissão Nacional de Direito Agrário e Agronegócio da OAB; membro Consultor da Comissão Estadual de Direito Agrário e Agronegócio da OAB/TO (2020-2021); membro da Comissão Nacional de Direito Ambiental da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2021-2022); membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio da Associação Brasileira dos Advogados-ABA (2020-2021); especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
Contato Acadêmico: costaneto.jus.adv@gmail.com
[1] Art. 20, § 2º da Constituição da República Federativa do Brasil.
[2] Art. 20, II da Constituição da República Federativa do Brasil.
[3] Art. 34, inc. 16 e Art. 64 da Constituição da República Federativa do Brasil.
[4] Art. 2°, § 5º da Lei n° 13.178/2015.
[5] Art. 11, § 1º do Dec. n° 10.592/2020.
[6] Dec. n° 11.995/2024.
[Atlas 21]Escrever por extenso. Seria o georeferenciamento?
[Atlas 22]O MMA e MAMC são separados?
[Atlas 23]Escrever por extenso