Caros deuses sagrados do tênis,
Nas duas últimas semanas vivi o primeiro grand slam desses 53 anos de minha rasa existência, paralisado em frente à TV pelo encantamento daquilo que assistia os atletas fazerem na batalha de Roland Garros. Até chegar a este momento resisti muito. Recusava a ceder ao óbvio ululante rodriguiano de que o tênis é uma das mais belas e emocionantes atividades humanas. Essa constatação me obriga a rascunhar a presente missiva para o mais desavergonhado pedido de sinceras escusas.
Primeiro por dar de ombros por décadas a tanto talento e a vidas inteiras entregues a um esporte que prima pela elegância e pelo fair play, com certeza, como poucos de fato o fazem.
Intelectualmente formado num país dominado por uma elite cruel, unicamente preocupada com seus privilégios e recusando-se a qualquer correção das desigualdades históricas que produziu – vide a resistência em tributar bens de luxo e a imposição do marco temporal para demarcação de terras indígenas –, sempre repeli qualquer tentativa de me aproximar do tênis, que, visto pelo viés progressista, simboliza toda essa cultura concentradora, injusta e massacrante dos mais necessitados que norteou a construção deste Brasil desumano.
É bem provável que essa seja a razão pela qual nunca senti o mínimo interesse de pelo menos conhecer suas regras básicas. Sempre desdenhei dos poucos amigos que, amantes desse esporte, numa roda de cerveja, metiam termos como “quebrou o serviço”, “break point”, “slice“, “match point” e outros que eu, em minha estreiteza de visão de mundo, imediatamente traduzia como mera demonstração do esnobismo burguês que legitima nossas desigualdades históricas, nossos abismos sociais.
Saibam Vossas Onipotências que, num novo momento da vida — como sempre digo, iniciando meu último terço de peregrinação por esta terra –, venho flexibilizando esse modo de enxergar tudo e todos que me cercam. Tenho procurado tirar toda a carga de preconceito das costas, ônus que torna mais pesada nossa passagem por estes campos, que nos obriga a nos arrastar pelo tempo cheios de infelicidade.
Essa suavização do olhar para o outro vale principalmente para as minorias e para as lutas dos menos favorecidos (“na dúvida, fique do lado dos pobres”, ensinou um mestre da vida, Dom Pedro Casaldáliga), mas também para o outro extremo, o Olimpo onde habitam os mais abastados, os mais favorecidos, aqueles em que a luta diária mais árdua não é pelo pão. Tudo bem que é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha, como afirmou o Mestre dos mestres, mas sempre há gente de caráter e humanistas em todos patamares dessa pirâmide, como também existem em todos os degraus os de espírito corrompido.
É por esse abrandamento dos conceitos dogmáticos do passado que acabei sendo levado pela esposa, Dona Sandra, para uma quadra de beach tênis, que via como um esporte tedioso, em que o jogador ficava com uma raquete na mão, movendo-se feito joão-bobo de posto de combustível. Primeiro tabu quebrado. Hoje luto contra balança e pelo domínio técnico, tamanha a empolgação.
Já um tanto mais maleável, nesse último período que passei em Maringá, cedi aos apelos de meu irmão Cláudio Toledo para assistir um game de tênis, até para correlacioná-lo com esse seu primo que vem se tornando mais popular, o beach tênis. Foram um, dois, quatro, oito games, e quando dei por mim estava completamente embevecido, disposto a ver um jogo inteiro.
Vossas Santidades estão longe de imaginar minha surpresa, decepção e frustração devidamente confirmadas nessas duas semanas de Roland Garros. A decepção de saber que passei décadas sem assistir os majors por onde desfilaram deusas como Maria Esther Bueno, Martina Navratilova e Serena Williams, num show de elegância, de verdadeiro e total empoderamento feminino; em que brilharam divindades do porte de um John McEnroe, Nadal, Federer, Guga e Djockovic.
No privilégio de ainda ter podido assistir Djockovic nessas duas semanas, eu o vi e a Carlos Alcaraz na sexta-feira, 9, num dos maiores espetáculos que já contemplei de disciplina, força, destreza, resistência, paciência e total domínio técnico. E esse sentimento de decepção me incomodou ainda mais: como perdi tanto disso por tantas décadas? Ah, o tempo! Esse cruel dono de nossas vidas, que se acelera quanto mais velhos ficamos, mas nunca, nunca recua para nos dar outra chance de refazer nossos passos. Claro, sempre podemos replanejar a rota a partir do hoje. É o que tento nesses últimos anos de redefinição da minha existência.
Surpresa foi ver a humildade do deus Djockovic ao se dirigir ao norueguês Casper Ruud, seu jovem rival derrotado, a quem inspirou a se dedicar ao tênis – como havia feito dois dias antes com o também jovem espanhol Carlos Alcaraz. Palavras doces de estímulo, sem a fatuidade dos burgueses, sem a imodéstia dos que vivem fácil sem se incomodar com a dor do outro.
Então, ao término de Roland Garros, veio a frustração de quem ignorou o tênis por toda uma vida por julgá-lo “menor e elitista”, por virar a cara à sua elegância, ao seu refinamento, à sua beleza e à sua mais absoluta emoção.
Frustração, Vossas Onipotências, porque conclui tristemente que o esnobe era ninguém menos do que eu mesmo, não Vossas Santidades e os diletantes deste esporte encantador.
Por isso, minhas mais sinceras desculpas.
Do mais novo apaixonado pelo tênis,
Cleber