Aquela turba em desvario me apavora. Flashes, empurra-empurra, o “olha aqui!” dos fotógrafos, dezenas de câmeras, repórteres inoportunos que gritam “vai apoiar o Júlio para Senado ou não?”. Um inferno que eu não suporto. Mas, contra todos os meus impulsos, estico largos e simpáticos sorrisos, aceno e lanço beijinhos para conhecidos que procuro aflita no meio da multidão para ter um ponto no qual me concentrar e, assim, não sofrer um ataque de pânico que coloque minha imagem em risco.
— Calma, queridos! Vamos falar com todos daqui a pouco — defendo-me.
O rapaz de bigode mustache e óculos redondos engordurados que lhe emprestam aspecto de intelectual de botequim gasta seu parco vocabulário para costurar uma pergunta que julga inteligente. Aquela figura patética merece ouvir alguns adjetivos cáusticos, mas, pela conveniência do momento, prefiro reprimir os instintos e adocicar a resposta numa tonalidade de voz que beira a cretinice, com frases anódinas, só para o idiota ter o que escrever em seu site medíocre.
— Agora, vocês vão me dar licença, amores, porque temos uma reunião para decidir o que todos vocês estão loucos para saber, não é mesmo…
A malta trevosa gargalha e os flashes espocam num intenso frenesi, de todos os lados, cegando-me as vistas, mas, enfim, consigo passar pela porta que o segurança carrancudo abre e rapidamente fecha. Mesmo aqui nesse valhacouto que se torna o sossego do gabinete, ainda sinto o corpo todo trêmulo. Meu Deus!
Mal tenho tempo para recuperar o fôlego já ouço a secretária me chamando de “prefeita”, o cargo que deixei há dois anos. Pergunta com um sorriso artificial, numa obviedade estulta, se consegui sobreviver à imprensa. Quem chamou esse inferno de repórteres para uma reunião que deveria ser secreta? Claro que o Júlio é o responsável, mas me garantirá, com a cara mais deslavada, que “não faz a mínima ideia”, que “essa imprensa é terrível e fica sabendo das coisas antes de todo mundo”. Que ódio! Na verdade, também, dane-se! O que importa é que meus objetivos sejam alcançados nesse encontro do qual fugi por muito tempo para obter o devido valor.
A secretária-cara-de-sonsa avisa que Júlio e Márcia ainda não chegaram. Óbvio! Parte da estratégia: chamar essa imprensa demoníaca para me colocar sob pressão, me encontrar encurralada e fragilizada, e, assim, tirar de mim o que quiserem. Estão muito enganados!
Já recolhida na sala de Júlio, ouço novamente os rumores do lado de fora e revivo a cena de filme de terror de minutos atrás. Meu corpo todo volta a tremer. Senhor! Até posso ver o casal se aproximando, o deputado em seus conhecidos passos lentos, calculados, serenos. Uma mão segura a da esposa, a sempre arrogante Márcia; a outra, espalmada com dedos colados, cumprimenta jornalistas e servidores da Assembleia que assistem a movimentação. Ele, com sua ensaiada simpatia, agora apazigua a choldra, ao mesmo tempo que protege sua mulherzinha do empurra-empurra com o braço em torno do ombro daquela piranha. Avisa que falará rapidamente com todos porque já está atrasado para a reunião, e sai com uma de suas tiradas estúpidas que sempre fazem todos rir, e o amar, do tipo: “Vai que meu atraso faça a prefeita desistir de me apoiar”. Cretino!
O intragável rapaz do bigode mustache ajeita com o indicador os óculos redondos de lentes engorduradas e nojentas, após se sentir satisfeito por emplacar outra pergunta imbecil. Júlio responde com paliativos. Quer livrar-se logo daquela balbúrdia toda para iniciar a nossa conversa, certo de que garantirá uma expressiva votação na região metropolitana tendo-me por voluntária. Imagina! Mal o canalha termina de desaguar as obviedades de sempre, retoma a procissão, seguido pela maldita imprensa que o espreme e à desdenhosa esposa no apertado corredor até seu gabinete.
Escuto o segurança de cara de poucos amigos fechar a porta, o turbilhão rumoroso se arrefecer e em minutos se resumir a cochichos aqui e ali, cujos zum-zum-zuns agora mal alcançam onde me guardo da ameaça que ronda bem próximo.
Sei que, assim que ingressou no gabinete, o deputado fez a leitura labial e do rosto retorcido da sonsa da sua secretária, que lhe informa que eu, tida como uma visita com feições de fera faminta, já o espero na sala dele.
Ao cumprimento de Júlio já quero saber quem chamou os malditos jornalistas. Adivinhe a resposta? Sim, como eu previ. Jura pelo mais sagrado que não faz ideia de quem vazou aos urubus o encontro que deveria ser secreto, e emenda aquele fechamento previsível: “Amiga, essa imprensa é terrível! Fica sabendo das coisas até antes da gente”. Cara de pau!
Queria uma conversa reservada, acertar todos os pontos, para só então, com tudo combinado, convocar entrevista coletiva. Mas, como já disse, também pouco importa, desde que eu chegue àquilo que busco. E coloco isso claramente à mesa para o deputado candidato a senador:
— Esse jogo, meu querido, se quiser que eu lhe dê muitos votos, tem que ser um ganha-ganha…
Vou direto ao ponto, como de meu feitio: o que levo em troca de ajudá-lo a chegar no lugar que, dizem, é melhor que o céu? Ele, numa atitude claramente provocativa, debochada, calmamente afrouxa a gravata, desabotoa a gola da camisa, esparrama-se pelo sofá e, com cara de menino travesso, desenha um riso jocoso no canto da boca para me responder: “Você ganha um senador dedicado ao desenvolvimento do Estado, à destinação de milhões de reais em obras aos municípios e blá-blá-blá, blá-blá-blá e blá-blá-blá”. O cretino desata uma tremenda gaitada ao final! Tudo bem que é engraçado, mas não estou aqui para piadas.
Márcia, a esposa esnobe, também não contém a gargalhada e, para não ouvir umas e outras, cala-se quando a fuzilo com o olhar e escorrega por um canto para pegar água com gás no frigobar. Não suporto essa sujeita enfatuada desde que tive o desprazer de conhecê-la, quando Júlio ainda era meu secretário. Um moleque que euzinha trouxe do movimento estudantil para o meu governo. Um pirralho que eu catapultei à Câmara e dali para a Assembleia! Mas a vadia sempre zombou pelas costas de quem lhes deu tudo. Sei que ela me julga patética.
Não posso perder o foco. O que quero é o acordo… Danem-se esses dois! Mas, pensando bem, sabe que é boa ideia lembrar quem deu ao agora deputado tudo o que ele conquistou… Além de cargos, o sólido patrimônio que auferiu a partir de minhas duas gestões.
— Precisamos considerar isso para iniciar essa conversa. Você era um fedelho do movimento estudantil, de família pobre… Olha hoje: rede de hotéis, fazenda, viagens anuais para o exterior, carrões… Quem te viu, quem te vê, seu Júlio! “De pirralho espinhento desconhecido da esquerda universitária à elite econômica do Estado!”, sublinho no ar uma manchete imaginária.
Não posso acreditar no que ouço! O ex-fedelho joga-me na cara que ficou apenas com uma parcela pequena de tudo que amealhou no governo para a própria chefe! Vê se pode! Você dá oportunidade para o ingrato subir na vida e ele queria ainda chegar ao topo sem retribuir! Quanta ingratidão, não é mesmo?
— Todos ganhamos, minha cara… Só queria que entendesse isso. E você ganhou mais que todos nós…
Quer saber? Não adianta esperar reconhecimento de quem você tanto ajudou nessa vida. E passado é passado. O que importa é o hoje.
Lembro ter concluído a gestão com quase setenta por cento de aprovação e que mantenho minha base em movimento por toda a região metropolitana. Embaixo de minhas asas!
Desta vez, não há qualquer gracinha, e os dois expõem a dentição artificialmente embranquecida que reluz em semblantes nervosos, já à espera do que está por vir. Meu povo vai ser decisivo para garantir o mandato a Júlio, que tem boa votação no interior, mas aqui, na região metropolitana, quem manda sou eu!
— Mas… — começo, e desfruto com prazer da apreensão do deputado e da inquietação que desfila na cara da petulante Márcia.
— Mas? — repete Júlio.
Levanto-me, no comando da conversa, com toda a atenção dirigida a mim. Os dois sabem que umas poucas ligações bastam para minha gente tomar as ruas, com adesivos, jingle, slogans e o que mais o candidato a senador quiser.
— Mas? — repete Júlio, agora com uma leve irritação.
Paro, encaro o deputado e curto o ápice de uma tensão que pode ser tocada. Ele e Márcia se entreolham rapidamente e voltam a me colocar no holofote.
— Uma bagatela…
Júlio bate, nervoso, as duas mãos nas pernas e pressiona o encosto do sofá.
— Só um milhão… — solto, então, num estalo, sem mais rodeios.
Que delícia ver o sempre sereno e senhor dos fatos Júlio imerso numa dramatização canastra de desespero! Já valeu a raiva que tive que passar com aquela leva de urubus sedentos por minha carne na chegada ao gabinete.
— Você está de brincadeira com a minha cara…
Uma sensação melíflua avança incontrolável por minha garganta, alcança a boca e imprimem um desenho saboroso em meus lábios. Experimento um prazer ainda maior ante o descabelamento de Márcia. “Fátima, você perdeu a noção!” Não tem preço contemplar a desolação fingida daquela vaca, cuja preocupação não é o dinheiro, que há e não é deles, mas de ser derrotada na negociação. Se acha esperta demais para ser vencida por mim.
Permaneço inerte, fleumática, comprazo-me da tamanha humilhação a que submeti aqueles dois maus-caracteres que devem tudo a mim, mas julgam-se superiores.
Espera aí! Escutei direito? O Júlio agora me diz o quanto está difícil conseguir recursos? Logo para mim? Fátima Oliveira? Que está nessa estrada há trinta anos? Será que supõe sinceramente que eu não sei que ele sempre sai de suas campanhas com gordas sobras de caixa? E, principalmente, que o dinheiro é canalizado pelas mesmas empreiteiras que hoje servem o Estado de seu amigo governador candidato à reeleição? Ou seja, o patife quer gastar pouco para continuar sobrando muito, pechinchando comigo!
Mantenho-me firme no propósito de não me deixar levar pela indignação diante dos dois patifes à minha frente, nem pela mais pura e intensa vontade de quebrar a cara deles. O foco no resultado final precisa estar acima dos meus instintos figadais.
Levanto-me e caminho resoluta até a poltrona, sobraço minha Louis Vuitton e despeço-me inabalável:
— A reunião acabou, babys… podem deixar que eu falo com esses malditos repórteres… Bye…
Deleito-me com o clima pesado às minhas costas, mas mantenho os passos firmes. Afinal, os dois mal-agradecidos não têm muito tempo para deliberações profundas, racionais e contestações plausíveis. Minha face se estica muito além do que já a repuxa todo o botox que nela reside, quando o casal grita, assim que toco a maçaneta da porta. A mão aferra-se ao puxador e espero a contraproposta sem me voltar.
Ouço quinhentos mil de Márcia. Bem, sabe, né? Nem pensar! Ajeito o cabelo em torno da orelha, reforço o “bye”, rodo a maçaneta e chego a sentir o arrepio no antebraço provocado pelo ar congelante que expele o aparelho no alto e à frente na antessala. Outro grito. Fecho a porta.
Os oitocentos mil sugeridos desta vez por Júlio fazem com que eu repouse novamente minha Louis Vuitton na poltrona e volte a ocupar a posição anterior.
— Como?
— Na conta de seus prepostos de sempre… São os mesmos, não são? — quer saber Márcia, numa fisionomia sombria.
— Você sabe que são…
Agora sou eu quem enceno:
— Estou perdendo duzentinho! — a mão sobre o coração.
Divirto-me com o olhar trucidante de Márcia. Imagino os pensamentos nada nobres que agitam a mente da má perdedora. Instigo ainda mais o furor da minha rival ao blefar que nem tudo será para mim. “Tenho sempre que deixar um pouco aqui e outro ali para meu povo”, minto. Quase estrago o script com a vontade sufocante de gargalhar, que consigo a custo conter. Claro que aquela zinha sabe que, se muito, essa distribuição somaria uns dez mil, com dois mil aqui, mil ali, quinhentos acolá. Regozijo-me com o olhar de censura de Júlio, que clama à esposa por comedimento. O deputado passa à operacionalização: o governo vai liberar o pagamento de obras e as empreiteiras repassarão parte na terça-feira, outra em quinze dias e, com os novos pagamentos do Estado, a terceira cota cairá em 30 dias. Pode ser? Tudo bem! Tenho um bom coração. Aperto a mão de meu afilhado político, dou-me por vencedora e contemplo mais uma vez as feições nada amistosas da nojenta Márcia.
A turba insana se alvoroça novamente quando abrimos a porta. O segurança mal-encarado dá um passo à frente com as mãos espalmadas, tentando refrear um pouco o ímpeto da malta, mas rapidamente estamos no alvo de microfones e câmeras. De mãos dadas, iniciamos o grand finale desse espetáculo.
— Deputado! Júlio! Fátima! Prefeita!
— Calma, queridos… — o sorriso meigo nos meus lábios contrasta com o riso forçado e curto na boca de meus aliados.
Não suporto mais olhar para o rapaz do bigode mustache e óculos redondos, engordurados e nojentos, que, outra vez, ataca, agora ao lado da magricelinha de rosto bexiguento da TV, que se acha estrela da novela das nove. Volto a pensar na boa imagem fundamental para negócios rentáveis desse rico mercado, espalho um “querido” pra cá, um “amore” pra lá, em meio aos flashes que me obrigam a proteger os olhos.
Juramos priorizar não os nossos interesses, mas os do Estado e da capital, que devem sempre se sobrepor a todos, incluindo as vaidades e os projetos pessoais. Lindo, não? Relato aos zelosos profissionais da comunicação que todas as questões maiores foram profundamente debatidas, o que fez com que os entendimentos avançassem bastante sobre o que consideramos mais importante para o bem de toda a nossa querida população. Admita, muito bom, não é?
Com o fascínio do triunfo sempre desfilando pelos lábios, digo aos jornalistas que nós três agora conversaremos com as respectivas bases e, se tudo ocorrer como esperamos, na quarta-feira anunciaremos o veredito.
Ainda de mãos dadas, afastamo-nos, arrastando aquela turba demoníaca de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Pelo menos o rapaz do bigode mustache não veio. Ficou para trás, ao lado da magrelinha bexiguenta da TV.
No elevador, assim que a porta se fecha, Márcia atira minha mão para longe e, emburrada, cruza os braços. Júlio tenta amenizar o climão produzido pela má perdedora com a mesma dentição artificialmente brilhante e o olhar escorregadio.
É doce o sabor da vitória!
SERVIÇO
Do livro “A noiva e outros contos políticos” (Ed. Veloso, 2023), de Cleber Toledo
Disponível em formato digital em:
Amazon (Kindle): https://amazon.com.br/dp/B0CLL3NRWD
Kobo: https://kobo.com/br/pt/ebook/a-noiva-e-outros-contos-politicos…
E no formato físico nas livrarias GEP Palmas, Gurupi e Araguaína e Leitura, no Capim Dourado Shopping, em Palmas.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.