Rodopiou na pista à meia luz da prestigiada casa noturna de Brasília, fechando a coreografia com uma gargalhada púbere e o corpo acolhido firmemente pelo parceiro. Nos últimos acordes da canção romântica, arqueou o tronco para trás, atirou uma perna à frente e manteve a outra na sustentação da ousada postura. O amante, então, a guindou suavemente e seus rostos encontraram-se com um ardente colar de lábios. As pálpebras cobriram os olhos e os braços retesaram-se. Ao final da carícia, sentiu-se atraída para um beco onde um leve e curioso sorriso desenhava-se numa boca à sombra.
O intruso abaixou a cabeça, deslizou para o bar e, numa espiadela, viu a mulher arrastar o companheiro para bem distante do intenso vai e vem dos garçons que chegavam com pedidos e saíam com as bandejas carregadas, em rebolados acrobáticos entre mesas e transeuntes. Os discos rotativos fixados no teto entrecruzavam luzes, colorindo a face entrincheirada num ângulo que a permitia acompanhar os movimentos no balcão sem se expor. Nesse monitoramento tenso, recobrou a circunspecção pela qual sempre exibiu toda a sua fleuma no Tocantins.
A testemunha indesejada tentou não pensar na constrangedora situação. Olhava seu copo, rodava o gelo com o dedo, mirava os balanços harmônicos de quadris bem resolvidos que transitavam próximo ao bar, mas havia um magnetismo irresistível que puxava o rabo dos olhos para a zona de onde cada movimento seu era esquadrinhado.
Para quebrar o fascínio do proibido que ocorria a alguns metros, decidiu fugir daquela força que quase o arrastava. De frente para o mictório, deu início ao conhecido ritual. Abriu o cinto, desabotoou a calça, baixou o zíper e ficou livre para desaguar. Já sentia o suave alívio do excesso etílico quando o sujeito estacionou na baia ao lado e executou desajeitadamente os mesmos movimentos.
— Você é do Tocantins, certo? — uma voz cheia de hesitação.
Ignorou-o com um silêncio impassível, concentrado no líquido que despejava sobre a cerâmica, produzindo um som surdo e constante, tomado por uma sensação quase sedativa.
— A deputada admira muito você — insistiu o fulano, fitando a parede, num timbre ainda bem oscilante.
Permaneceu indiferente. Após esvaziar-se, encerrou com o rito inicial operado de trás para frente. Fechou o zíper, abotoou a calça e trancou o cinto. No lavabo, abriu a torneira, molhou as mãos e apertou a saboneteira como se tirasse leite de um úbere. Esfregou uma palma na outra e depois entrelaçou os dedos.
— Precisamos muito de sua discrição… — agora tartamudeava.
— Sobre o quê? — desconversou sério, arrancando as delicadas folhas de papel toalha para se enxugar.
O outro esboçou um sorriso de missão cumprida ao abrir a torneira do lavabo.
***
Chegou cedo ao Palácio Araguaia para a cobertura de mais um evento político enfadonho. No gabinete abarrotado, fotógrafos acotovelavam-se pelo melhor ângulo. Manteve-se distante daquela balbúrdia e posicionou a caneta sobre o bloco de anotações, aguardando as obviedades de sempre dos discursos protocolares. Sob a chuva de flashes, as autoridades disputavam as proximidades do governador para também ocuparem as capas dos principais sites e o noticiário da TV.
Entre um registro e outro de platitudes, sentiu-se incomodamente observado. Procurou ansioso de onde vinham os olhares furtivos, mas não os localizou. Numa das vezes que levantava a cabeça do bloco de anotações fisgou um pedaço de rosto fixo nele, mas que rapidamente submergiu sob ombros imensos sem que pudesse ser identificado. O jornalista escorou-se sobre a ponta de um pé e pendulou o corpo para um lado e outro, mas, fosse quem fosse, desapareceu. Voltou a atenção ao discurso fastidioso.
O cerimonial deu a solenidade por encerrada com os agradecimentos de praxe e, numa coreografia desordenada, os fotógrafos recuaram e os repórteres avançaram de microfones e celulares em punho sobre o governador, que pedia calma a todos com a ajuda de um assessor.
Na babel de perguntas e alertas de “um de cada vez”, descobriu quem o sondava minutos antes. A deputada deixava o gabinete a passos largos sobre estrepitosos saltos. Apenas ajeitou o longo cabelo liso e preto atrás da orelha, sem se voltar.
***
Muito estranha a ligação da secretária estadual da Saúde. Nunca abriu a agenda para atender seus insistentes pedidos de entrevista. Esnobe, virava a cara para ele nas vezes que se cruzavam e agora, sem mais nem menos, chama-o pessoalmente no celular, cheia de risadas nervosas, diz que quer muito uma aproximação, joga confetes — “você é a maior referência do nosso jornalismo” — e fala que tem uma proposta irrecusável de parceria com o blog.
Irritava-se só de pensar no tempo que perderia na antessala, mas, mal chegou, a moça da recepção o empurrou para o interior do gabinete.
A secretária, num sorriso amarelo, aguardava em pé ao lado de um longo sofá de couro que formava conjunto com duas poltronas. Apesar de não entender nada de mobiliário sofisticado, imaginou que deveriam custar uma fortuna e aquilatava quantos remédios poderiam ser comprados com essa grana.
— Você aqui! Que delícia! — nos lábios um quê de excitação e dissimulação.
Embarcou, mas com uma ligeira alfinetada:
— Que alegria encontrar você após tantas tentativas!
Abraçaram-se e a mulher apertou-o fortemente como se amigos íntimos que não se encontravam havia décadas.
— Me fale tudo sobre você e não me esconda nada! — exigiu, sentando-se e disparando uma gargalhada estridente que a fez inclinar a cabeça para trás.
Falou. Do início do blog, quatro anos antes, das dificuldades da vida de um jornalista sem patrão, visto como mosca na sopa pelo poder, ignorado pelos maiores anunciantes; dos filhos, mulher, viagens, faculdade… E já não havia mais assunto. Então, foi direto ao ponto.
— Mas… Secretária, o que eu estou fazendo aqui?
Ela levantou-se do longo e caro sofá, entrelaçou os dedos das mãos, com os braços estirados à frente do corpo e, por fim, desabou numa das poltronas, colocando-se mais próxima do jornalista.
— Veja… É algo muito bom… Uma amiga nossa…
Bingo! Caiu-lhe a ficha imediatamente. A Secretaria da Saúde era lote da deputada no governo do Estado. Não poderia ser diferente. A fleuma, a arrogância, o nariz em pé. Uma cópia da outra. Nervoso, ajeitou-se no confortável assento, sentindo-se sobre espinheiros.
— Nossa amiga quer que eu lhe dê todo suporte para que você continue esse trabalho revolucionário no nosso jornalismo…
— E por quê?
Ela descruzou a perna e inclinou o corpo em direção ao dele, modulando a voz num tom de confessionário:
— Meu amigo, você é um jornalista muito importante e muito bem informado. E o que sabe vale muito, sobretudo se não for publicado… — um risinho fino e afetado.
Ele aprumou-se novamente e, no contrapasso da mulher, cruzou as pernas. A tragédia de sua vida financeira desfilava à sua frente e a consciência puxava-o para o devido lugar.
— Na prática, o que significa? — perguntou, cândido e desconcertado.
— Que todo mês alguém vai te procurar…
— E? — mesmo ar de pureza.
A secretária aproximou-se agora o quanto pôde do rosto dele e cochichou:
— Digamos que o custeio de seu blog não lhe será mais problema! — novamente o risinho fino artificial, após expelir a frase em tom de comemoração.
O outro afastou-se arrastado pela consciência, que insistia na queda de braço com o filme do desastre de sua vida financeira ainda a assombrá-lo bem à sua frente.
— Mas… — diria, por fim, que não precisavam se preocupar, que não tinha nenhum interesse na vida particular da deputada, que saísse com quem quisesse.
A secretária, porém, pareceu entender que o jornalista reclamaria do valor que sequer havia sido mencionado.
— Sem “mas”, meu amigo! — E continuou num sussurro: — O que você tem vale o que precisar… – o risinho que aquela altura já o irritava.
Palavrosa, levantou-se de supetão numa corridinha desengonçada, arrastando as sandálias até a mesa. No derramamento incessante de frases mal articuladas e aleatórias, gargalhadas ébrias, atrapalhou-se para abrir a gaveta, o que acabou conseguindo num repelão. Tirou o envelope branco razoavelmente volumoso e jogou-o na direção do jornalista, que o agarrou qual hábil goleiro. No piscar dos olhos exigido pelo movimento instintivo para não deixar o pacote cair, deparou-se com a arquejante secretária já à sua frente. Emparedado, não pôde sequer raciocinar os contra-argumentos.
Metralhando elogios à importância de seu serviço informativo imparcial e corajoso para a sociedade tocantinense, a mulher prendeu-lhe a mão e empurrou-a rumo à bolsa que ele mantinha repousada no colo. Ainda no ritmo da profusa verborragia, a secretária abriu o zíper da pasta, o fez largar o recheado embrulho dentro, arrastou o fecho-eclair e, num puxar brusco, pôs o assustado homem de pé, colado ao corpo dela, como se agora fossem os dois que dançassem naquela casa noturna da Capital Federal.
— Que coisa boa ter recebido você! Melhor ainda com essa nossa… essa nossa… ah, sim! Parceria… Tchauzinho! — bateu a porta após despedir-se agitando as pontas dos dedos, com outro risinho fino, desta vez cúmplice.
Passou pelo Hospital Geral de Palmas e, ainda remoendo a estranha audiência, só pensava em quantos remédios poderiam ser comprados com o dinheiro daquele envelope empurrado para a sua bolsa, certo de que agora a deputada poderia encontrá-lo despreocupada. Ele é quem passaria a se entrincheirar.
SERVIÇO
Conto do livro “A noiva e outros contos políticos” (Ed. Veloso, 2023), de Cleber Toledo
Disponível em formato digital em:
Amazon (Kindle): https://amazon.com.br/dp/B0CLL3NRWD
Kobo: https://kobo.com/br/pt/ebook/a-noiva-e-outros-contos-politicos…
E no formato físico nas livrarias GEP Palmas, Gurupi e Araguaína e Leitura, no Capim Dourado Shopping, em Palmas.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.