Um voto. Um único e maldito voto. O meu. Era “seu Inácio pra cá”, “seu Inácio pra lá”, “me leva na UPA Norte”, “meu filho precisa ir para o HGP”, “meu gás acabou”, “minha energia foi cortada”… E o idiota aqui de Uber gratuito e bancando a vida de todo mundo! Agora endividado para sempre… Meu Deus! Eleitor é tudo vagabundo! Por que não ouvi Dona Simone, minha mulher, que não votou em mim, mas foi sincera. Com o dedo a milímetros da ponta do meu nariz e o olhar que me fuzilava, disse que eu não merecia a confiança de nenhum cidadão por ser totalmente despreparado. Prova disso, apontou, descarregando uma nuvem de perdigotos, nossas parcas economias e nosso diminuto patrimônio torrados na campanha.
Estava certo de que seria eleito! Uma vaga da Câmara já me pertencia. Não havia a menor dúvida! Todos me adulando, garantindo dez, quinze, vinte, trinta votos da família… E a empolgação nas reuniões? Aplausos de me emocionar, abraços com estampidos nas costas. “Tu já tá eleito”, diziam. Só me chamavam de “vereador”. Gastava feliz, ou melhor, investia feliz. Acreditava. Por que não deveria?
Nem sei quanto esbanjei em contas de água, luz, remédios, gás e cestas básicas para todo o povo. Um prejuízo irremediável, mas eu tinha que reduzi-lo. Ora se não!
Comecei por Dona Sebastiana. Um botijão de gás que me custou o dinheiro da gasolina e me fez ficar quase uma semana inteira a pé. Velha lazarenta! “Seu Inácio! Aqui todo mundo é seu! Se depender de quinze votos, tu já é vereador. Nóis tudo só vota se for em tu, senão a gente nem sai de casa.” E eu carregando o botijão nestas costas grossas, comprando registro, mangueira e até a caixa de fósforo que os mortos-vivos não tinham para acender o fogo. Só faltaram pedir para eu lhes dar o arroz, o feijão, a carne, o óleo, o sal, cozinhar e ainda mastigar por eles.
A pustulenta cozinhava orgulhosa quando entrei. Sem dar a menor satisfação, fui arrancando tudo. Arremessei o fogão velho e enferrujado pra longe, retirei a mangueira, desrosqueei o bico do registro e rasguei a florida capa que ela havia colocado em meu botijão – o que até me soou como uma provocação adicional.
— Quinze votos, né, seu satanás!
— Mas, seu Inácio, não foi culpa nossa…
— Não foi, não, sua chaguenta! Como me prometem votos, me fazem gastar o que nem tinha, e, quando abrem as urnas, só encontram o meu! O meu! De mais ninguém…
— Seu Inácio, me adescurpe! — a morfética agora vertia lágrimas de crocodilo — Nóis tava tudo pronto para ir votar no sinhô quando passô o Zé Dofredo com quinze notas de cem e nóis tava precisado… Pensemu: seu Inácio fica em haver para a próxima política…
— Velha mazalenta! Tu já viu voto no crédito?
— Logo, logo tem otra política, seu Inácio! Perciso tanto desse botijão… Tem dó, seu Inácio!
— Tenho dó de tu como teve d’eu, velha mal-agradecida! Quero que tu e sua família morram tudo de fome, pestiada! — às gargalhadas fui saindo com o botijão nas costas, o registro numa mão e aquela praga atrás, jorrando água dos olhos.
Um par de muletas por doze votos. Achei até barato, entrei no cartão e me lasquei. O manquitola do Zé Butim estava lá todo saltitante e eu pagando o mínimo da fatura, engolido por juros escorchantes. Saindo do Bar do Gil, ele pererecava para casa. O pé da perninha fina, enfiado na chinela surrada, só resvalava no chão e já ganhava o impulso das minhas muletas para um novo salto gracioso. O cotoco da outra balançava alegremente pra lá e pra cá. Uma ágil mobilidade assegurada pelo engabelamento do qual fui vítima. Sem sobreaviso, passei uma rasteira baiana na base de alumínio e o cabra deu um duplo carpado. Nem deixei as muletas chegarem ao chão para que não amassassem — alguém certamente ia se interessar em comprá-las.
— Que isso, seu Inácio? Tu ficou doido, foi?
— Doido tava quando acreditei que tu era homem de palavra, seu fi dum cão! Meus doze votos que é bom nada, mas tá gostoso ficar sassaricando pra todo lado sobre minhas muletas, né, miséra! Que se arraste pelo asfalto como jararaca, o que faz mais o tipo dum verme como tu.
— Oh, seu Inácio! Não seja mal com um coitado feito eu…
O lazarento também danou-se a chorar.
— Coitado sou eu… abusado por um bando de eleitor covarde como tu e os outros. Me fizeram gastar e criar dívida que nunca tive pra depois me encherem de facadas nas costas, seus cães!
Deixei-o se esfolando no asfalto quente das três horas da tarde de sol palmense em direção ao meio-fio e saí novamente gargalhando para que soubesse quem riu por último. Lesma desconjuntada!
Mas ainda não me dava por satisfeito. Peguei meu alicate e fui para casa da Jurema. Sorriso bonito, queria aquela velha boca murcha. Dezoito votos garantidos, afiançava ela para ter a dentadura. “Meu sonho, seu Inácio, poder mastigar um naco de carne novamente! Nhan-nhan-nhan… Oh, meu Deus! Só de pensar… Que vontade!” E ainda brinquei: “E, de dentes, dá até para trocar uns beijos com a rapaziada”. Riu saliente com lábios de saco de estopa, a ordinária. Lá se foi o dinheiro que guardava para comprar o notebook dos sonhos de minha menina.
Jurema tomava o corredor em direção à cozinha entoando uma música cafona e de dentes postiços reluzentes à mostra. Quase engoliu a prótese quando saltei à sua frente com cara de dementado, braços escandalosamente erguidos e, numa mão, a terrível boca de ferro aberta. Arrastei-a de volta à sala e deitei-a na poltrona que fiz de minha cadeira odontológica.
— Seu Inác…
— Abra a bocarra, infeliz! — eu alimentava a alma com o pavor impresso na carantonha da ingrata, agora sem sorriso algum.
Usei a mão em punho de escora para afastar as mandíbulas e, com o alicate, fui puxando a dentadura espumada e babada.
— Seu Inácio! Pelo sagrado! Devolve meus dentes, pelo amor de Deus! Por favor! — implorava com as beiçolas moles flamulando sem conseguir articular “f”, “v” e “s”.
— Fico sem meus dezoito votos e tu sem a dentadura, sua boca de pano! Vai voltar a tomar sopinha…
Pulei a janela da cozinha por onde havia entrado gargalhando de dentes bem visíveis.
Vez do Cidão. Pilantra! Quatro pneus recauchutados do Corsinha derrubado que o faz se sentir milionário. Vinte e dois votos! Endoideci na hora. Negócio imperdível! Fiz as contas. Dinheiro não tinha, mas me desfiz da bizinha da mulher, que, emburrada, voltou a tomar ônibus para o trabalho. Lembrei-a que esposa de vereador não usa transporte coletivo. Só desfila de carro oficial pra cima e pra baixo.
O pilantra até parece que fazia questão de passar toda hora na frente da minha casa com o cotovelo transbordando pela janela daquela carroça sobre sapatos novos. Por vinte e dois votos, por mim, tudo bem. Mas na urna só havia o meu.
O Corsinha dormia com os anjos sob a mangueira quando cheguei com o macaco e tocos para escora. Trocar pneus sempre foi minha especialidade. Rapidinho o carro velho estava descalço em cima dos pedaços de pau. Fiquei com as rodas de juros.
Não é que o cidadão ainda teve o desplante de ir à minha porta no dia seguinte? Cara de pau!
— Devolve os meus pneus, disgraça!
— Teus pneus tão lá junto com meus vinte e dois votos. Se achar esses votos, pegará os pneus. E as rodas… — devolvi, bicando um café e encarando o pulha nos olhos.
Cidão quase arrancou os cabelos de tanto puxá-los, xingou até perder a voz, rodou como se tivesse incorporado alguma entidade e uivou olhando para o céu. Não teve jeito. Ficaria sem os pneus, e sem as rodas também. Por fim, conformou-se e caminhou ao lado de dona Simone até o ponto para que os dois tomassem o coletivo para o trabalho. Ambos de beiços derrubados.
Chegou a vez da maior de todas as medidas saneadoras contra esses eleitores corruptos. O muro. Zé Gonçalves empenhou a maior de todas as promessas. “A família toda”, colocou à mesa. “Cinquenta e seis votos.” Como não seria vereador? Até sentia a gravata descendo pelo bucho e o paletó apertando os sovacos. Fechado, claro!
Como construir é caro. Cimento, areia, tijolo, brita, tudo pela hora da morte. Meti um restinho de poupança, o especial do banco, o fiado, e vendi o último bem, meu sedan 1998. O coração dilacerado. Que tristeza! Mas, vereador, colocaria um zerinho no lugar. Ainda no primeiro mês.
O muro, por fim, estava lá levantado em derredor da casa. Com direito até a inauguração, quando costurei umas quatro ou cinco frases mal-ajambradas, porque falação não é comigo. Até disse aos presentes que teria que aprimorar essa técnica para os discursos que seria obrigado a proferir da tribuna do Legislativo municipal. Devo dizer, porém, que a solenidade já me deixou cismado. Só eu, Zé Gonçalves, nossas mulheres e filhos. No total ali, nove, mas, com título mesmo, só os quatro adultos. E os cinquenta e seis votos? O agraciado aludiu viagens de trabalho, enfiou outras motivações no leriado e concluiu que eu podia ficar sossegado. Como sou homem de palavra, acreditei que ele também era. Assim, a pé, voltei, para casa feliz com essa quantidade toda de eleitores garantidos.
Mas na urna só o meu voto. Infeliz! Deixa estar…
Manobrei o fusqueta do meu irmão. Rabicho muito resistente. Na mão, a marreta. No ombro, uns bons metros de corda. Enquanto imperava o silêncio do imóvel vazio em dia de trabalho e estudo da família, fiz três buracos em pontos estratégicos de um lado do muro, sustentei a construção com a corda no rabicho do fusqueta e pisei fundo. Oh, carro possante! Nem precisou tanto para tijolos e chapisco tomarem a calçada. O mesmo procedimento em todo o entorno daquela pocilga que Zé Gonçalves chama de residência e logo a casa estava tão desprotegida quanto quando me engambelaram com a conversa dos cinquenta e seis votos que não me deram.
Claro, agora estou aqui, preso, contando essa história para vocês, mas vingado desses eleitores malditos, covardes e corruptos. Cê besta, sô! E, se quer saber, nem me venha mais com essa conversa de política! Tomei foi é birra!
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.