Um dia perfeito. Começou com o grupo totalizando sessenta e dois líderes de todo o Tocantins, graças à adesão de mais treze prefeitos e vinte e nove vereadores do extremo norte do Estado. Muito experientes e com votação expressiva em suas cidades, dão de tudo aos pobres coitados. Da fralda ao caixão, do remédio à ambulância, da comida ao emprego. São o ar que respiram aqueles desvalidos, que jamais lhes negariam o voto sob o risco de morrerem asfixiados. Assim, a planilha ia ganhando volume e não havia a menor dúvida de que a fecharia tal qual planejado. Estava a poucas semanas de pular da Câmara para o Senado.
Juca do João ainda tentou arrancar-lhe dois mil reais extras. Porém, números não mentem. Nas três últimas eleições de sua pequena cidade nunca superou os 300 votos. Era o máximo que poderia esperar do vereador, bravo feito guerreiro Apinajé. Mas, para quem faz da política seu principal negócio, o já-a-um-passo-de-se-tornar-senador não se intimidaria com a valentia sertaneja. Jogou umas palavras empoladas pra lá, trouxe-as arrumadinhas pra cá e entregou-as cheias de um aparente sentido lógico incontestável. O iracundo parlamentar teve que lhe apertar a mão, como se entalado com um cururu, e sair cuspindo fogo. Mas gaba-se de ser homem direito, cumpridor da palavra empenhada e, o mais importante, de controlar seu curral eleitoral feito capataz. Diz que em voto dele ninguém mete a mão, ou o couro come. E come mesmo.
Da poltrona do carona jogou a pasta com a preciosa planilha no banco de trás da caminhonete e o motorista arrancou para a BR-153, pela qual seguiria até Palmas, mercadejando às margens da rodovia. Na próxima parada, mais dez prefeitos e setenta e cinco vereadores da microrregião aguardavam-no. Ávidos por colocarem seu capital político para render, foram arregimentados pela deputada estadual Mônica do Jordan, que ainda gentilmente cedera-lhe a residência para atender os líderes.
Da sala, um enorme burburinho tirou-lhe a concentração no último cálculo que garantiria o apoio do prefeito Toinho Chicote. Irrompeu no amplo ambiente em que as dezenas de líderes esperavam e deu com vários homens ao centro, num empurra-empurra que, por muito pouco, não desemboca em troca de socos e pontapés. Mais uma vez prevaleceu o tino comercial:
— Pra quê isso, meus amigos! — fez o jovem deputado-quase-senador. — Não há necessidade de nenhuma demonstração de brutalidade… Todos terão espaço, afinal, são líderes importantes e vocês oferecem o que mais me interessa: votos! Então, vamos acalmar os ânimos. Cada um vai ter a sua parte.
Esse era justamente o problema. Joaquim do Babaçu, o prefeito da cidade vizinha, não aceitava abrir mão de poder e defendia que ele era quem deveria discutir o apoio com o candidato a senador em nome do Executivo e do Legislativo.
— Aliás, como sempre… Eu mando… — avisou encarando os desafetos.
Alegava que todos os nove vereadores compõem a base governista, têm cabos eleitorais empregados na gestão e são atendidos nos requerimentos para patrolar vicinais, tapar buracos no asfalto, trocar lâmpadas de postes e outras demandas de seus redutos. Assim, concluiu, nada mais justo do que obedecerem ao comando do prefeito.
Com a veia grossa e nervosa saltando do pescoço, apontava o dedo para os quatro que se rebelavam: o presidente da Câmara, Joca Paçoca, apoiado por Gustavão do Bar, Serafim Serralheiro e Jão Menino. Os outros cinco parlamentares do município mantinham as cabeças baixas, num silêncio servil.
Joca rebateu avisando que não é gado da fazenda do prefeito. Lembrou que em toda eleição o líder maior da cidade faz os arranjos em nome do Legislativo sem a devida partilha dos dividendos.
— Desta vez, não! Você não fala mais em meu nome… — anunciou num gaguejante desabafo, sugando todas as forças do franzino corpo para aquele confronto. Em seguida, avisou ao candidato: — Gosto do senhor, deputado, mas, se não fechar direto comigo, trabalho na cidade para tirar seus votos!
Os demais insurgentes concordaram com um tímido menear de cabeça.
O quase-senador, claro, não queria uma tragédia dessa magnitude, sabedor que era da crescente popularidade de Joca no município, razão que, inclusive, encorajava o vereador a amotinar-se. Pediu licença a Toinho Chicote, convidou os dois líderes da escaramuça para o escritório e apresentou a solução salomônica: ambos, prefeito e presidente da Câmara, falariam individualmente em nome de seu respectivo grupo e fariam o quisessem com o dividendo do acerto político. Joaquim resmungou, mas teve que se resignar diante do indomável vereador. O esboço do que parecia um sorriso nos seus traços rudes demonstrava que Joca se agradara da proposta. Quando levantaram-se e saíram sem sequer se olhar, o candidato tinha certeza de que manteve os votos intactos na cidade, mas também que ali nascia uma ruptura que mudaria a relação entre Executivo e Legislativo. “Rompimento em nossa política nunca se dá por ideias, só por negócios”, pensou.
Mais uma etapa bem-sucedida e outro importante avanço na planilha. Dentro da caminhonete fechou as contas e não tinha dúvida: amealhara ao longo das últimas semanas apoios suficientes para figurar entre os dois primeiros colocados. A próxima parada asseguraria-lhe o primeiro lugar e, provavelmente, uma votação histórica no Tocantins.
Pela BR-153, seguia em êxtase. Da Câmara para o Senado não seria um mero salto, mas um verdadeiro lançamento meteórico de sua carreira. Havia os chineses que o cercavam com suas intenções latifundiárias e os americanos querendo jogar dados e cartas em território brasileiro. Empresários das duas potências mundiais sinalizavam claramente o desejo de investir tudo o que fosse possível, sobretudo em quem tem prestígio e voto em plenário. Sempre estaria à disposição de todos, sem qualquer discriminação ideológica. Afinal, preconceito nunca é bom para os negócios.
Na residência do Doutor Rodolfo Bonfim, contudo, as fisionomias não eram boas. Ligara para o advogado dias antes, de Brasília, e estava tudo certo. “Só chegar para o fechamento”, garantiu o aliado em relação ao grupo de dezoito prefeitos e cerca de sessenta vereadores. No enorme quintal da refinada casa, os muitos homens e as poucas mulheres tomavam as mesas no entorno da piscina, mas sentiu certa frieza nos cumprimentos. Mal entrou no escritório, Doutor Rodolfo adiantou-se com o olhar pesaroso e, após um aperto de mão frouxo, bateu a porta.
Guido Costa passara dobrando a oferta. Empresário totalmente inexperiente em política, com dinheiro em grande volume para derramar na campanha, acreditava que conseguiria superar a natural impopularidade inflacionando o mercado.
— Fecharam?
— A meu pedido, nossos líderes decidiram primeiro conversar com o senhor, deputado…
A mesa de reuniões logo foi toda ocupada. Alguns, tensos, permaneceram de pé. Não era possível que a inata veia para os negócios o deixaria, justamente agora, sem qualquer alternativa para se contrapor a um amador que julgava que só o dinheiro bastava para tomar-lhe a vaga. Estava muito enganado. A grana é parte importante desse comércio, mas não decidia por si apenas.
— Doutor Rodolfo me colocou a par das novas…
Começou com um simpático sorriso de vendedor autoconfiante e passou a rememorar os mais de dez anos de relacionamento com o seleto grupo. As emendas parlamentares que sempre garantiram popularidade e oportunidades de ganhos polpudos aos líderes, o sólido apoio político e financeiro para candidatos a prefeito e a vereador, as viagens a Brasília por conta do gabinete, de portas sempre escancaradas a todos. E o que a concorrência oferece para desfazer parceria tão duradoura e bem-sucedida? Dinheiro… E o que mais? Guido Costa não sabe sequer como funciona Brasília. Se deixá-lo na Esplanada dos Ministérios não chega ao Congresso, desdenhou. Já ele apresenta a seus comandantes um plano grandioso que tem o Senado apenas como mais uma etapa, porém, mira mesmo, a curtíssimo prazo, o Palácio Araguaia. Olhou para cada um na sala, apontou o dedo a rostos vexados e disse que via à sua frente, acima de tudo, irmãos. O grupo inteiro, assegurou com o indicador suspenso, integra o projeto, que não é dele, mas das mãos que lhes foram estendidas nessa epopéia que está sendo escrita por homens e mulheres que desejam fazer história e alcançar o sucesso na vida pública e privada. Todos terão seu devido espaço. Todos, sua chance de se projetar. Todos, seu valor. Ninguém será esquecido; ninguém, deixado para trás. E estão querendo trocar tudo isso pelo primeiro aventureiro que aparece para comprá-los feito mercadoria numa prateleira, sem qualquer perspectiva futura? Alguém que certamente perderá a eleição, se trancará em sua bolha e nunca mais atenderá sequer uma ligação de líderes tão valiosos para o desenvolvimento daquela região fundamental para o Tocantins.
— Qualquer decisão de vocês, meus líderes e irmãos, encontrará minha resignação, meu respeito…
Finda a peroração, quedou-se à cabeceira da enorme mesa com o rosto enfiado nas mãos, sob os olhares fixos e encalistrados de sua atenta plateia de companheiros políticos.
Murmúrios foram brotando pela sala, cochichos ao pé do ouvido, balançar de cabeças, mais sussurros, garatujas financeiras sobre rascunhos, passos curtos e ágeis para trocas de informações entre um grupo e outro, e de novo o mergulho num silêncio inquietante.
— Fico com o senhor, deputado — avisou uma voz cavernosa, encerrando o intervalo mudo que parecia sem fim.
Um a um, os demais ocupantes das cadeiras, e até os que permaneceram de pé, confirmaram a aliança vitoriosa que ali se consolidava. Então, o quase-senador ergueu-se com o olhar refulgindo e um enorme e iluminado sorriso.
— Pois vamos começar os atendimentos, meus irmãos! Não temos tempo a perder! Há uma eleição que todos vamos ganhar!
Abriu a pasta e sacou a indispensável planilha, enquanto todos se retiravam e Doutor Rodolfo postava-se à porta para coordenar o acesso dos líderes à sala.
Já era tarde da noite quando, após centenas de quilômetros pela intensa BR-153, o motorista chegou à Orla da Graciosa e deixou-o à porta do imponente prédio que se erguia de frente para o Lago de Palmas, àquela hora com uma passarela ondulada refletida pela lua em seu espelho d’água. Cansado por mais um dia extenuante de negócios, jogou a pasta sobre o carpete, estirou-se no sofá e foi tomado por bons pensamentos.
— A cada dia vou me aperfeiçoando mais e mais nessa arte! — rejubilou-se com um delicioso sorriso de vitória e abraçando a confortável almofada.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.