O alarido soava-lhe como música, mas não era fácil trafegar com a carriola desvencilhando daquela intensa movimentação de corpos, carrinhos de feira e sacolas. Uma multidão cruzava o corredor central, para onde muitos fluíam das ruelas laterais de coloridos vegetais uniformemente dispostos nas bancas.
— Licença… licença… licença…
Ia empurrando o trambolho desajeitado, deparando-se com sorrisos compreensivos de uns e olhares irritados, até intimidadores, de outros. No rápido segundo que contemplou o rebolado faceiro que lhe cruzou o caminho, deu com o rebordo de metal da frente da carriola na perna de alguém.
— Pô! Cuidado, cidadão! — saltitando, o transeunte mirou raivoso, com apenas um olho e numa careta de pirata, o distraído condutor.
Serpenteou entre as pessoas que se aglomeravam na viela com o verde luzidio do almeirão, do alface e da cebolinha, de um lado, e o vermelho do tomate, o alaranjado da cenoura e o roxo do repolho, do outro. Passou pelos temperos diversos e também multicoloridos, dobrou na esquina da pamonha e do curau e deu de cara com o enorme cartaz que garantia o pastel mais crocante de Palmas.
O deputado João Eduardo, que havia lhe tomado o seu maior capital, o partido pelo qual tanto se dedicara, saboreava a delícia prometida pela barraca, cercado de asseclas. Baixou a pala do boné e atravessou às costas do grupo. Não sem sentir um certo frêmito pelas lembranças que irromperam desse desditoso encontro. “Os grandes só querem faturar sozinhos. Não sobra mais nada para os pequenos”, indignou-se em pensamento.
Fez excelentes negócios na presidência daquele partido nanico, tratamento pejorativo ao qual invariavelmente insurgia-se, na roda dos íntimos, com ar de deboche e indicador ao céu dando fé da assertiva:
— Opa! Alto lá! Nada de nanico! Um gigante que me dá a independência necessária para mercadejar!
Nas últimas eleições municipais fartas teve os quarenta e três segundos mais valiosos de sua vida. Tempo de TV e rádio era ouro. Duzentos mil reais para compor a aliança vitoriosa. Os candidatos a vereador queriam uma fatia. Vê se pode! Revoltaram-se, falaram em denunciar ao Ministério Público, à mídia. Mas quem costurou o acordo? O partido era de quem? Conciliador nato, engabelou empresários amigos e angariou uns trocadinhos para os caras, que, como de costume, ficaram satisfeitos da vida. Os pobres coitados são seduzidos por qualquer migalha que lhes cai na mão.
Depois das eleições, abocanhou a Secretaria Extraordinária de Orçamento Comunitário, pôs um filho na assessoria especial do gabinete do prefeito, a nora numa coordenação da Secretaria da Mulher e a ex-esposa virou secretária executiva dos Esportes. Fora o mais novo, que granjeou lucrativas subempreitas aqui e ali ao longo da gestão.
Nem só de cargos vive o bom dirigente partidário, mas também do tráfico de influência. Com boa lábia faz-se excelentes aliados e, se forem secretários importantes, abrem portas para oportunidades infinitas. Tem empresário que quer colocar seu serviço ou produto no município e outro que precisa receber o que lhe devem há anos. Vergonha que se recusem a saldar o que é de direito de nossos valiosíssimos empreendedores, que depositam tanta fé no Poder Público! Com um mísero óbolo para quem media e para quem assina e paga, a injustiça é desfeita rapidamente.
Assim, adquiriu casarão, carrão e até chácara às margens do Lago de Palmas em pouco mais de uma década de boas conduções dos negócios partidários.
Na barraca do queijo, requeijão e castanhas, o ex-deputado federal Fábio Vieira. Empresário de sucesso, político fracassado. Um sem-voto que, dono da verdade, olhava o mundo de cima. Por chegar uma vez à Câmara Federal graças ao carismático e poderoso governador da época, deu para achar-se popular e colocou na cabeça que o povo o queria prefeito. Óbvio, caiu do cavalo.
Única aposta errada em doze anos de frutíferas transações. Havia assumido a presidência do partido fazia pouco. Ainda verde, confiou na dinheirama do deputado e cometeu a insanidade de dividir o tempo de TV e rádio em três suaves parcelas de trinta mil reais. Assinou a ata da convenção depois de pôr a mão na entrada, e a coisa ficou por isso. Tombo de sessenta mil paus! “Esse faço questão de cumprimentar”, pensou, emborcando a carriola em direção à barraca do queijo.
— Meu deputado! Você sumiu! — a costumeira abordagem.
— Valmir… — assustou-se, e já disparou a conhecida cantilena: — Olha, as coisas não estão fáceis… A política… a política… só-só-só me deu prejuízos… Não quero mais saber disso… Uma hora vamos acertar tudinho, tudinho… Pode acreditar! Sou homem de palavra! — indicador ao lado da orelha apontando ao céu.
Após as mesmas lenga-lengas de todos os encontros casuais, o ex-parlamentar pagou rapidinho pelos laticínios e saiu pressuroso.
— O senhor esqueceu o requeijão! — gritou o rapaz da barraca, mas Fábio Vieira já havia sido tragado pelo vai e vem babélico.
Retomou o percurso da carriola em direção ao estacionamento da Feira da 304 Sul, onde o surrado caminhão de abacaxi do Mané jazia como se ali estivesse há séculos.
— Por onde andava, Excelência! Por que demorou tanto? — recebeu-o, desdenhoso, o produtor com quem se associara num sítio em Miranorte desde o fim da safra política. — A madame aqui está esperando você levar uma carga de abacaxi até a Hilux dela… Pode ser? Sua Excelência teria tempo na agenda para atendê-la? — o velho lazarento dobrou-se numa gaitada e a bela mulher ao lado conteve o discreto risinho com a mão de dedos finos e unhas vermelhas.
Ao longo dos últimos cinco anos sem o partido, viu todo o patrimônio ir embora. Só restaram-lhe os abacaxis. E o asqueroso Mané.
Palmas, 23 de março de 2021.
SERVIÇO
Do livro “A noiva e outros contos políticos” (Ed. Veloso, 2023), de Cleber Toledo
Disponível em formato digital em:
Amazon (Kindle): https://amazon.com.br/dp/B0CLL3NRWD
Kobo: https://kobo.com/br/pt/ebook/a-noiva-e-outros-contos-politicos…
E no formato físico nas livrarias GEP Palmas, Gurupi e Araguaína e Leitura, no Capim Dourado Shopping, em Palmas.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.