O carro invadiu o meio-fio e avançou pelo calçadão da praça, onde apenas veículos de autoridades, em situações muito especiais, tinham permissão para transitar. Mas, claro, não trazia qualquer um. O hatch parou a metros de Eduardo e esposa. No banco de trás, o rapaz de pouco mais de 20 anos, com rosto iluminado pela luz da tela, deslizava o dedo sobre o smartphone com calma budista.
Sequer pareceu notar quando o motorista, moço da mesma idade do passageiro, desceu afobado e deu duas passadas nervosas até a porta traseira. Após o chofer abri-la, o ocupante ainda passou longos segundos digitando para só então descer fleumático, ignorando qualquer outro ser que estivesse no seu entorno. Repuxou o paletó, ergueu o nariz aquilino e, com o olhar fixo à frente como quem passaria tropa em revista, seguiu em direção ao casal num caminhar decidido.
— Eduardo, querido! — cumprimentou esticando o braço.
— Mário! — recebeu o outro, assistindo o hatch deixar o calçamento ao fundo.
— Maria Clara… — dirigiu-se Mário à mulher, que devolveu um educado sorriso.
Eduardo apontou uma das duas cadeiras vazias em sua mesa. Acomodado, Mário cruzou as pernas imponente e, com uma mão, assentou os cabelos negros e lisos.
— Não sabia que você tinha sido convidado para o aniversário do vice-prefeito…
Eduardo sentiu uma ponta de alfinetada, mas ignorou a provocação em nome da diplomacia.
— Pequenos empresários também são lembrados pelas autoridades. Às vezes…
Mário desenhou um leve sorriso.
Oriundo de um movimento estudantil barulhento, trabalhou duro na campanha eleitoral do novo prefeito e, assim, acabou guindado ao comando da Secretaria Municipal da Juventude.
— E como é sair da luta estudantil para virar autoridade?
Mário contorceu-se na cadeira, tentando reprimir uma agitação que lhe sacudiu.
— Não é fácil… É uma luta, como você mesmo disse — ergueu os olhos e uma das mãos delicadas em direção ao outro para dizer isso num ar professoral. — Mas fomos forjados justamente nessa luta a que você se referiu. Estamos preparados.
O vice-prefeito João Ricardo, percebendo a chegada do ilustre conviva, desvencilhou-se da roda em que se revolvia pelas galhofas que ele mesmo soltava. Enquanto os companheiros do grupo continuavam sacolejando-se, o sexagenário avançou em passos vacilantes de quem sente um peso excessivo sobre o corpo.
— Mário… — cumprimentou, de braços abertos, bonachão, a nobre autoridade que acabara de chegar.
O secretário levantou-se, bem como o casal que o acompanhava.
— Mário, não… Secretário, meu vice-prefeito… — corrigiu, num olhar pesaroso para o casal, sob um aterrador constrangimento.
— Secretário só não, estrela maior de nossa gestão — emendou o superior.
O jovem político abriu um imenso sorriso, agora sentindo-se verdadeiramente prestigiado diante dos dois cidadãos comuns com quem, humildemente, dividia mesa.
— Feliz aniversário, Excelência! Que ideia fantástica de comemorar seu aniversário numa praça pública, meu vice-prefeito… Afinal, nós, autoridades, precisamos estar próximos do populacho.
João Ricardo olhou, confuso, para o casal, que esboçou semblantes de quem tampouco compreendia toda aquela jactanciosidade.
— Obrigado, Excelência… – devolveu o vice-prefeito na mesma formalidade, com uma ironia dançante em performance pelo rosto. — A praça é do povo, como o céu é do condor, diria Castro Alves!
— Grande Castro Alves… — respondeu Mário, em expansiva expressão de sapiência.
Eduardo e Maria Clara apenas deixavam a conversa seguir na instância superior.
— Aproveitando, senhor secretário, o prefeito me disse que lhe enviaria um ofício importante hoje e me pediu para trocar umas ideias com Vossa Excelência a respeito. Sua agenda permite que fale comigo na próxima semana?
Mário sacudiu-se mais uma vez com o tom de reserva que exalava do pronunciamento de quem habitava as mais altas esferas do Paço Municipal.
— Claro, senhor vice-prefeito, será um grande prazer falar em audiência com Vossa Excelência dos projetos que temos para a nossa juventude — e voltando-se para o casal de espectadores, alertou-os sobre a normalidade desses segredos de alcova nos píncaros do poder. — Nossos amigos devem estar estranhando toda essa confidencialidade de Estado, mas é normal nas relações políticas, não se preocupem.
O vice-prefeito coçou a cabeça com o indicador entre o que lhe restava de fios, muito brancos, e olhou para algum lugar como se buscasse um motivo para sair dali.
— É que preciso aprender um pouco mais com Vossa Excelência… — disse a Mário, despedindo-se. — Desculpe-me deixá-lo só, secretário, mas o senhor está muito bem acompanhado. Vemo-nos na semana. Até lá!
O homem se afastou com o mesmo mover desengonçado das pernas, sofrendo para carregar proeminente pança. Cumprimentou ternamente algumas pessoas enquanto passava e voltou a encostar-se à roda da qual se deslocara minutos antes. Cochichou algo com o tronco reclinado ao centro do grupo, com uma mão em concha sobre a boca, e todos voltaram a contorcer-se em risos incontroláveis.
— O vice-prefeito é meu fã… — fez o secretário, com um sorriso.
O motorista voltou, após as dificuldades costumeiras para estacionar o carro. Trazia um ar de preocupação.
— Mário… — começou a dizer ao descansar o corpo sobre a cadeira que restava vazia.
— Mário? — advertiu o chefe.
— Quer dizer, secretário… o chefe de gabinete ligou… Precisa falar com você… quer dizer, com o senhor…
— Diga a ele que o secretário está numa agenda muito importante com o vice-prefeito. Ligo quando puder — ditou a mensagem, olhos fixos em direção ao casal, desfrutando do momento sublime em que todo o seu poder era testemunhado.
— Disse que é urgente — alertou o chofer.
— Importante é a agenda do vice-prefeito e do secretário da Juventude do Município de Palmas. Que insolência! Envie um texto… — disparou contra o motorista, sempre escrutinando a reação de cada músculo da face de Eduardo e Maria Clara.
O rapaz deu um “ok” e começou a teclar a mensagem no smartphone.
— Aqui, não… — interveio Sua Excelência, apontando com a cabeça para o banco de concreto sem encosto, a coisa de dez metros da mesa.
— Não, pode ficar aqui… Oh, Mário! — intercedeu Eduardo, constrangido pelo motorista.
O secretário esboçou o mesmo semblante professoral de quem fala aos que nada entendem dessas coisas de poder.
— Tudo tranquilo, amigo… É do protocolo. Ele está acostumado… Para ficarmos mais à vontade…
— Mas ficaremos à vontade com o rapaz aqui com a gente — reclamou também Maria Clara.
— Está tudo bem, sem problemas — o motorista encerrou a discussão e foi se acomodar no desconfortável banco.
Mário fulminou o olhar sobre as duas criaturas à sua frente até sentindo-se penalizado pela ignorância delas a respeito de toda a cerimônia exigida na corte.
— Amigos — continuou com seu ar catedrático —, a relação de poder é diferente das relações… é… como eu diria… bem… do dia-a-dia dos populares… — encostou-se mais à cadeira. — Temos um protocolo de como precisamos ser tratados pelos auxiliares dos níveis inferiores e como devemos nos tratar, entre nós mesmos, os líderes… O poder precisa ser exercido, ou o poder não é poder… — filosofou rasamente num riso curto.
— Hum… — devolveu Eduardo num muxoxo.
Maria Clara o cutucava por baixo da mesa, com a ponta da sandália, sinal claro de que era hora de se retirar. O marido, contudo, queria testar até onde iria todo aquele desvario.
— Muito interessante… Mas o vice-prefeito, por exemplo, não parece muito apegado a essas formalidades do poder… Somos amigos já há algum tempo… Nunca o vi sequer com motorista…
Mário disparou umas risadinhas baixas e afetadas, com o tronco em leves pulinhos. Por fim, reclinou-se em direção ao interlocutor e cochichou:
— O exercício do poder não é para todo mundo… Há aqueles que saem do populacho, mas o populacho não sai deles… — voltou ao risinho superior, com os mesmos pulinhos do tronco. — Se é que me entende — sussurrou, por fim, com uma astuta piscadela.
Eduardo soltou um anódino “certo”.
Pouco depois o motorista voltou a aproximar-se, com o mesmo ar de urgência. Pôs-se agitado em pé ao lado do secretário, que descrevia ao casal a importância de autoridades como ele expressarem na fala, nos gestos e nas relações a imponência do cargo ocupado.
— Quem se omite nesse ponto, perde o respeito e, sem respeito, não se sustenta no cargo, e, sem cargo, não há poder — ensinou, num semblante glacial.
Mário irritou-se, por fim, com o verdadeiro frenesi do chofer, que, ainda em pé, roçava a perna no braço do chefe, olhando o casal com um riso nervoso.
— Que foi? — esbravejou o secretário para o auxiliar.
— O chefe de gabinete de novo, Má…, quer dizer, secretário…
— Já disse…
— É sobre um ofício do prefeito que chegou…
O motorista, então, curvou-se e falou longamente ao ouvido de Mário, que mantinha o casal à vista com um sorriso desbotado, que foi se dissipando conforme escutava o assessor, até ficar com a aparência totalmente desfigurada. O secretário levantou-se de abrupto.
— Vão me dar licença, mas uma urgência me espera na secretaria… — saiu em passos curtos e ligeiros, que nem de longe lembrava a fleuma da chegada.
Eduardo e Maria Clara olharam-se e gargalharam.
— Que cara louco! — fez ela. — Vamos aproveitar para nos despedir antes que chegue mais um maluco à nossa mesa.
Na roda de muitas gargalhadas, no centro da praça, a voz zombeteira do vice-prefeito era hegemônica. Ao casal, pareceu que o alvo das pilhérias era a autoridade que havia deixado a festa apressadamente. Quando os viu, João Ricardo deu uns passos em direção aos amigos arrastando a barriga.
— Já vamos… — anunciou Eduardo.
— É muito cedo… É agora que tudo vai começar…
O político, matreiro, passou a mão pelo queixo.
— Cadê Sua Excelência?
O casal não pôde deixar de rir.
— Recebeu uma mensagem importante, algo sobre o prefeito, não entendemos direito, e saiu quase correndo…
O segundo homem do comando municipal gargalhou, deixando o casal desconcertado.
— Então, ele já está sabendo que descerá da corte para a planície… O prefeito não deu conta do garoto… Ele é importante demais, e o cargo ficou pequeno para tão ilustre celebridade…
Agora os três riram. João Ricardo, então, segredou ao casal:
— Marquei de recebê-lo semana que vem para um afago e dar-lhe um chá de realidade…
Despediram-se e o político voltou com o andar desajeitado à roda zombeteira, ao que tudo indica, para dar as últimas de Sua Excelência.
SERVIÇO
Conto do livro “A noiva e outros contos políticos” (Ed. Veloso, 2023), de Cleber Toledo
Disponível em formato digital em:
Amazon (Kindle): https://amazon.com.br/dp/B0CLL3NRWD
Kobo: https://kobo.com/br/pt/ebook/a-noiva-e-outros-contos-politicos…
E no formato físico nas livrarias GEP Palmas, Gurupi e Araguaína e Leitura, no Capim Dourado Shopping, em Palmas.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.