Hoje venho divagar, literalmente, nas águas das primeiras chuvas e nos sonhos que elas despertam.
Minha pequena cidade natal, Dianópolis (embora entenda que o tamanho da terra natal seja dimensionado de acordo com a importância que ela exerceu e exerce na vida de cada um, a exemplo de milhares de outras por esse Brasil de meu Deus), terra de gente simples e boa e, também, muito ligada à cultura, em especial à literatura.
Cidade que está incrustada a poucos quilômetros de uma bela serra no sudeste do Estado do Tocantins e que lhe empresta uma paisagem de cartão postal. Talvez por essa beleza ímpar e pelo meu amor de filho daquele lugar, tenha guardado na alma a convicção de que os trovões nasciam naquele ponto geográfico denominado Serra Geral.
Todos os anos, na mesma época, final de setembro para começo e meados de outubro, aquele barulho de trovões que lembra coronéis cavalgando sobre os gerais (espécie de campo e cerrado sobre o platô da serra e abundante em nascentes de águas), anunciava para todos nós que as primeiras chuvas chegaram.
Descalços, minha rua e eu, esperávamos o momento mágico do ciclo da natureza que mais uma vez começou.
Minha rua se encarregava do cheiro da terra molhada. Meu coração de criança antevia os anjos que em forma de gotas de cristais desciam do céu dependurados numa cortina límpida, transparente, abençoando e renovando a vida nas flores de cajus, mangueiras e outras frutas da estação e após engravidar a terra quente e fértil, transformava-se em enxurradas para juntos brincarmos como coadjuvantes do tempo.
Construíamos pequenas barragens que represavam as águas e meu mundo infantil. Redemoinhos se formavam, espumas se levantavam e se transformavam em pequeno e misterioso mar.
E nós juntos: os anjos, o cheiro da terra molhada e as mãos do inocente construtor e artesão de sonhos. Um descuido apenas e as barragens, as águas represadas, o cheiro da terra molhada, os anjos e meus sonhos desciam ladeira abaixo, desaguando no Córrego Getúlio, que ficava apenas a uma chuva da minha casa. Juntos buscavam um córrego maior, depois um rio mais distante, que por sua vez encarregava-se de entregar ao velho Rio Tocantins a missão de embalá-los até o encontro com o belo e jovem Rio Araguaia e entregá-los incólumes ao grande Rio Amazonas, que carinhosamente os despejavam no mar.
Os anjos, minha rua e eu nos transformávamos em navegantes dessas águas, profundas e misteriosas.
Guiados pelas estrelas conhecemos muitas noites. Juntos, por diversas vezes, vimos a lua nascer como rainha e logo depois entregar-se completamente ao sol, o astro rei! Nos deliciamos e brincamos sobre imensas ondas. Juntos sentimos frio e saudades (como o frio lembra saudade!) e conhecemos ilhas e praias desertas. Numa delas ancoramos e lá todos os anos aguardamos as águas das próximas primeiras chuvas que haverão de chegar anunciadas pelos trovões nascidos na minha bela Serra Geral. Mas as águas das próximas primeiras chuvas chegarão e não mais contarão com o cheiro da terra molhada e os anjos não poderão brincar com as mãos da criança artesã. E o momento mágico passará desapercebido por quase todos da minha cidade. As águas correrão apenas pela dureza do asfalto que a ilusão do progresso se encarregou de trazer, e, então, as águas não encontrarão mais barreiras, não formarão redemoinhos e não farão mais poesias e não mais encontrarão o Córrego Getúlio, agora destruído pela ambição dos homens comuns e adultos. Somente os anjos continuarão navegando em busca de outras águas e dos meus sonhos, que por serem irmãos, um dia, com certeza, se reencontrarão.
Como afirma meu compadre Pedro: “Em cada um de nós existe uma “Dianópolis” guardada na alma e no coração!
“Quem tem ouvidos que ouça, quem tem olhos que veja”
JOSÉ CÂNDIDO PÓVOA
É poeta, escritor e advogado; membro-fundador da Academia de Letras de Dianópolis.
candido.povoa23@gmail.com