A Constituição Federal de 1988 introduziu uma série de inovações no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, com destaque para o que concerne à propriedade. Um dos princípios consagrado pelo texto constitucional é o da função social da propriedade, que vem a ser um desdobramento direto do princípio da dignidade da pessoa humana e do bem-estar social, constituindo pilares da ordem jurídica brasileira.
A função social da propriedade é um princípio que impõe ao proprietário o dever de dar à sua propriedade uma utilização que atenda ao interesse coletivo, além de resguardar seus próprios interesses individuais. Este conceito está inserido no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, o qual determina que a propriedade atenderá sua função social. Isso implica que o direito de propriedade, embora assegurado pela Constituição, não é absoluto e deve ser exercido de maneira a beneficiar não somente o titular do direito, mas também a sociedade como um todo.
Entretanto, deve-se ressaltar que a função social não se sobrepõe ao próprio direito de propriedade, direito este correlato a importantes direitos constitucionais, tais como o direito à moradia e à dignidade humana. Assim, a função social e o direito de propriedade são postulados que devem caminhar juntos, buscando-se um equilíbrio entre ambos com vistas a garantir tanto os direitos individuais constitucionais quanto o interesse social.
Além do artigo 5º já mencionado, a função social da propriedade é reforçada em outros dispositivos constitucionais. O artigo 170, que trata dos princípios gerais da atividade econômica, estabelece que a ordem econômica deve observar, entre outros princípios, o da ‘função social da propriedade’. Tal orientação normativa é essencial para a promoção da justiça social e do desenvolvimento econômico equilibrado.
No âmbito rural, as especificidades da função social são detalhadas pelo artigo 186 da Constituição, que assegura que a propriedade rural atenda à sua função social quando satisfaz simultaneamente certos requisitos, incluindo o aproveitamento racional e adequado; a utilização prudente dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente; a obediência às normas que regulam as relações de trabalho; e a exploração que promove o bem-estar tanto dos proprietários quanto dos trabalhadores.
Quanto à propriedade urbana, o artigo 182, parágrafo 2º, estipula que esta cumpre sua função social quando observa as exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor, ferramenta básica da política de desenvolvimento e expansão urbana.
O cumprimento da função social da propriedade apresenta diversas implicações práticas significativas. Inicialmente, viabiliza a desapropriação por interesse social ou utilidade pública, conforme estabelecido no artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal. Tal desapropriação constitui uma medida extrema adotada pelo Estado para assegurar que a propriedade privada desempenhe sua função social. Quando um imóvel não cumpre essa função, seja por estar abandonado, subutilizado ou explorado de forma inadequada, o Estado tem o poder de intervir a fim de promover o interesse coletivo.
Ademais, a função social da propriedade é fundamental na orientação de políticas públicas voltadas à reforma agrária e à regularização fundiária em áreas urbanas. A legislação infraconstitucional, incluindo o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) e o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), elabora esses princípios e define mecanismos para sua implementação.
Acresce-se a dimensão ambiental da função social da propriedade. O uso do imóvel deve obedecer às normas ambientais, assegurando a sustentabilidade e a preservação dos recursos naturais para as futuras gerações. O artigo 225 da Constituição Federal de 1988 consagra o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, atribuindo ao poder público e à sociedade a obrigação de defendê-lo e preservá-lo, inclusive mediante a utilização da propriedade privada.
Portanto, a função social da propriedade é um dos pilares do direito de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, configurando-se como um importante mecanismo para promover a justiça social, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar coletivo, além de garantir o direito de propriedade mencionado. Ao relacionar o exercício do direito de propriedade ao interesse social, a Constituição Federal de 1988 introduz uma nova concepção de propriedade que transcende o caráter meramente individualista e privilegia a realização dos direitos fundamentais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Este princípio, ao mesmo tempo em que garante o direito de propriedade, impõe responsabilidades ao proprietário, que deve usar seus bens de forma a contribuir para o bem-estar social e a preservação do meio ambiente. Deste modo, a função social da propriedade, conforme disciplinada pela Constituição Federal de 1988 e pela legislação infraconstitucional, reafirma o compromisso do Estado e da sociedade na promoção de um desenvolvimento econômico e social harmonioso, em consonância com os princípios da dignidade humana, do direito à moradia e da justiça social.
KELSON PÓVOA COSTA
É advogado membro da Ribeiro Costa Advocacia