A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo inaugural, consagra o princípio democrático como fundamento essencial do Estado, ao estatuir que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos. Referido preceito fundamental explicita que a legitimidade do poder político reside na vontade popular, fonte primária de autoridade em nossa ordem constitucional.
Nesse sentido, a famigerada expressão de Abraham Lincoln, no Discurso de Gettysburg, sobre o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, resume a essência da democracia, no qual o poder emana da soberania popular, exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos os cidadãos.
No âmbito do Poder Executivo, à medida em que são eleitos, os mandatários exercem suas funções públicas de administrar e governar com a garantia constitucional do respeito à independência e harmonia na divisão funcional dos poderes do Estado.
Contudo, essa prerrogativa não é absoluta, uma vez que é admitida a interrupção temporária do mandato, por meio de decisão judicial cautelar de suspensão do exercício de função pública, conforme previsto no artigo 319, inciso VI, do Código de Processo Penal.
Nesse diapasão, imprescindível a devida fundamentação e motivação, com elementos específicos e concretos, os quais sejam aptos a demonstrar a premente e indispensável necessidade do afastamento daquele que fora legitimamente eleito pela vontade popular.
Destarte, a decretação da medida cautelar de afastamento do cargo público deve ser motivada e fundamentada com a demonstração de indícios de materialidade e autoria delitiva, bem como no perigo concreto e atual decorrente da permanência do investigado no exercício do mandato eletivo, além da existência de fatos novos ou contemporâneos. Necessária, ainda, a indicação, expressa, do período de afastamento, dentro dos limites dos princípios da razoabilidade, sob pena de recair em uma cassação branca do mandato[1], o que vai de encontro à previsão constitucional, que veda a cassação de direitos políticos, ainda mais de forma antecipada.
Ademais, é imperioso ressaltar que fatos pretéritos, anteriores ao início do exercício do mandato e desprovidos de qualquer conexão com a função pública exercida, não podem ser alicerce fundamentador para a medida cautelar.
Sendo assim, a decisão cautelar de afastamento de um mandatário legitimamente eleito pelo povo, sem a estrita observância dos requisitos previstos no ordenamento jurídico, equivale a uma genuína cassação branca de mandato, recaindo em uma arbitrariedade, apta a ensejar violação da ordem pública e administrativa, bem como a soberania popular e a autonomia do direito ao voto dos cidadãos, além de inserir, na localidade, uma instabilidade social, política, econômica e jurídica.
LEANDRO MANZANO SORROCHE
É advogado especialista em Direito Eleitoral, Público, Tributário e Estado de Direito e Combate à Corrupção; membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – Abradep; vice-presidente do Instituto de Direito e Político do Tocantins-IDETO; e membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/TO
[1] STF – AgR SL: 1241 CE – CEARÁ 0027418 57.2019.1.00.0000, Rel. Min. Dias Toffoli (Presidente), Data de Julgamento: 20/04/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-119 14-05-2020