A Menina da Pauliceia que Abraçou o Brasil Profundo
Nascida em São Paulo, em 1925, Ignez Magdalena Aranha de Lima, que o Brasil inteiro conheceu como Inezita Barroso, foi muito mais do que uma simples intérprete da música sertaneja. Filha da elite paulistana, desde cedo demonstrou um espírito contestador e uma coragem incomum para a época: decidiu trilhar um caminho que não era considerado “adequado” para mulheres – o da música caipira.
Ainda na década de 1950, quando o rádio dominava os lares brasileiros e os preconceitos culturais eram muito mais acentuados, Inezita começou a conquistar o público com sua voz firme, timbre grave e um repertório enraizado na tradição rural brasileira.
Ao longo das décadas, ela se consolidou como uma das maiores defensoras da cultura popular do interior do Brasil, registrando em discos, livros e programas de TV o verdadeiro espírito do Brasil profundo.
Viola, Minha Viola: Um Palco de Resistência Cultural
A consagração definitiva de Inezita veio com a apresentação do lendário programa “Viola, Minha Viola”, exibido pela TV Cultura de São Paulo por mais de 30 anos.
Ali, Inezita não apenas apresentava artistas: ela se tornou uma espécie de mediadora cultural, conectando o público urbano às raízes sertanejas do país. O programa virou referência nacional, abrindo espaço tanto para artistas consagrados, quanto para novos talentos regionais, que encontravam naquela vitrine uma rara e preciosa oportunidade de visibilidade.
Palmas e o Tocantins no Mapa da Música de Raiz
É aqui que minha história se cruza com a dela. Em 2007, tive a honra de pisar naquele palco, ao lado de meu saudoso pai, Pereira, e de nosso parceiro Feliciano, formando o trio Os Canarinhos. Fomos os primeiros artistas a representar Palmas e o Estado do Tocantins no “Viola, Minha Viola” – um marco não apenas para nossa carreira, mas também para a música de raiz do Tocantins.
Naquela ocasião, vivi um momento inesquecível: foi ali, em rede nacional, que estreei meu acordeon, inaugurando um novo capítulo em nossa trajetória musical. A emoção de ver Inezita anunciando nosso nome, com aquele sorriso acolhedor e sua autoridade de quem conhecia a alma da música caipira, é uma memória que carrego com orgulho até hoje.
O Respeito de Inezita pelos Novos e Velhos Talentos
Participamos de outras edições do programa, e em todas as vezes, a generosidade de Inezita era visível. Ela fazia questão de nos cumprimentar pessoalmente, sempre interessada em saber mais sobre nossa terra, nossas influências e nossa história. Para Inezita, não havia distinção entre artistas veteranos e novatos: todos eram tratados com o mesmo respeito e com a mesma reverência à música de raiz. Ela compreendia que cada um de nós carregava consigo um pedaço vivo da cultura popular brasileira.
Curiosidades Pouco Conhecidas Sobre a Dama da Viola
Se por um lado o público via Inezita como a dama elegante da viola, há facetas de sua vida que poucos conhecem:
• Formada em Biblioteconomia pela USP, em 1947, Inezita era meticulosa na preservação da própria história. Mantinha um acervo pessoal com 26 cadernos de recortes, fotos e dedicatórias, além de mais de 3.600 slides, todos organizados com cuidado profissional.
• Viajante destemida, em 1956 ela dirigiu um jipe até Belém do Pará para realizar uma pesquisa de campo sobre cultura popular, em plena década em que mulheres raramente assumiam esse tipo de aventura.
• Seu famoso violão branco Del Vecchio é uma verdadeira relíquia histórica: guarda autógrafos de personalidades como Juscelino Kubitschek e Luiz Gonzaga, preservados com camadas de esmalte.
• Foi homenageada com o título de Doutora Honoris Causa, além de reconhecida internacionalmente por sua contribuição ao folclore.
• Seu legado audiovisual hoje está digitalizado no projeto “No Gravador de Inezita”, realizado pelo Itaú Cultural, preservando registros raros entre as décadas de 1950 e 2010.
O Legado Que Não se Apaga
Inezita nos deixou em 8 de março de 2015, mas sua voz, sua luta e sua generosidade continuam ecoando por todo o Brasil. Sua dedicação à música de raiz foi muito além dos palcos e câmeras: ela abriu caminhos, formou plateias, derrubou preconceitos e deu voz a quem não tinha espaço na grande mídia.
Para mim, que tive a honra de fazer parte, ainda que por alguns instantes, dessa história tão grandiosa, a lembrança de Inezita é também a lembrança de um Brasil mais simples, mais verdadeiro e musicalmente mais honesto.
Que seu legado siga inspirando novas gerações de violeiros, artistas e todos aqueles que acreditam, como ela, que a verdadeira música nasce da alma, das mãos calejadas e do chão batido das estradas brasileiras.
RAFAEL DIAS
É acadêmico do curso de Psicologia, advogado, radialista, cantor, compositor, musicista, integrante da dupla sertaneja Rafael Dias & Paulinho, ex-integrante do famoso Trio Os Canarinhos do Brasil, criador e ex-maestro da 1º Orquestra Sanfônica do Tocantins “Orquestra Amor Perfeito”, foi secretário do Procon Municipal de Palmas em meados de 2023/2024.
@rafaeldiassp
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