O escritor Laurentino Gomes, em sua grande obra “1889”, lembra que a data da Proclamação da República não tem prestígio no calendário cívico brasileiro e “é uma festa tímida”, “geralmente ignorada pela maioria das pessoas”. É verdade. Hoje mesmo me perguntaram por que é feriado. Gomes diz que “esse estranho fenômeno de indiferença coletiva encontra explicações na forma como se processou a troca de regimes”.
A Proclamação da República, continua o autor, “não resultou de uma campanha com intensa participação popular”. “Em vez disso, foi estabelecido por um golpe militar com escassa e tardia participação das lideranças civis”. O autor de “1889” ainda ressalta em sua brilhante obra que, apesar da intensa propaganda republicana, “a ideia da mudança de regime político não deslanchava na população”. Ele exemplifica com a última eleição parlamentar do Império, em 31 de agosto de 1889, quando o Partido Republicano elegeu somente dois deputados e nenhum senador. O escritor diz, por fim, que “a República brasileira nasceu descolada das ruas”, e resgata uma frase famosa do jornalista Aristides Lobo, testemunha da proclamação: “O povo assistiu àquilo bestializado”.
Em sua maioria, nossa população tem sido mantida à margem das conquistas republicanas neste pouco mais de um século da proclamação. O processo de exclusão social do Brasil é algo extremamente cruel, resultante de uma mentalidade elitista que sempre se preocupou apenas com o seu desenvolvimento individual e nunca sequer pensou na inclusão das grandes massas de injustiçados que existem por todo o País.
Os movimentos golpistas que estão nas ruas neste momento – diga-se, cada vez mais enfraquecidos – são reflexos dessa mentalidade egoísta e extremamente individualista, que quer um Brasil que dê certo para seus negócios e sua família, e que se dane o resto. O Estado que se vire para manter patrioticamente conformada a “horda” dos que passam fome, apanham das forças de seguranças por serem negros e pobres, vivem de subemprego e de remunerações miseráveis, sem escola decente e um atendimento médico minimamente humanizado. Nosso país ainda tem uma República a ser construída e o passo inicial para isso é justamente garantir a inclusão da maior parte de seu povo aos direitos mais básicos: comer, morar, cuidar da saúde com decência e estudar com qualidade.
E a elite brasileira é a que mais precisa contribuir para a redução desse fosso que a separa do resto do País. O ex-ministro Ciro Gomes afirma em seu livro “Projeto nacional: o dever da esperança” que “a décima parte mais rica de nossa população apropria-se de 52% da rendas das famílias brasileiras, o centésimo mais rico, de 23,2%, e o milésimo mais rico, de 10,6%, e, pasmem, o meio milésimo mais rico, de 8,5% de nossa renda”. Ciro lembra que o meio milésimo mais rico no Uruguai se apropria de 3,3% da renda, e, na Noruega, de 1,7%.
A elite sempre alega que nossa carga tributária é muito alta, o que o ex-candidato a presidente desmente em seu livro. Ciro afirma, com base em dados sólidos, que o peso tributário nacional é menor do que o europeu. Enquanto no Brasil, em 2017, foi de 32,36% do PIB, a carga tributária média na Europa, com números de 2014, chegou a 41,5%; na Bélgica, a 47,9%; na Dinamarca, a 50,8%; na Alemanha, a 39,5%; na França, a 47,9%; na Itália, a 43,7%; na Noruega, a 38,9%; e na Finlândia, a 44%.
Em sua obra, cuja leitura fica mais do que recomendada, Ciro propõe aumentar imediatamente o imposto sobre grandes heranças para 8% em todo o Brasil – a média hoje está 3,86% –, o que garantiria ao menos R$ 20 bilhões adicionais de arrecadação por ano e atingiria somente os 0,3% brasileiros mais ricos. E são várias outras propostas, como aumentar o imposto de renda para os que ganham acima de R$ 20 mil (valor que pode ser negociado para cima), tributo progressivo sobre patrimônios superiores a R$ 10 milhões, com alíquotas de 0,5% a 1%.
Ideias para não faltam para que o Brasil tenha, de um lado, mais recursos para aumentar os investimentos e gerar empregos; e, de outro, combater com seriedade, como política de Estado e não de governo, a inaceitável miséria que ainda impera num país rico. Não é admissível que tenhamos irmãos brasileiros passando fome, e são 33 milhões hoje! Toda vez que pego comida na panela isso me vem à mente. E dói.
Nesses anos de obscurantismo que estamos encerrando em dezembro, por minha luta por democracia, fui chamado muitas vezes de “comunista” e “esquerdista”. Não ligo a mínima, e quem me ataca não saberia conceituar esses termos. A ignorância campeia. Sempre fui um homem de centro, mas que, num momento de elevada turbulência da vida pessoal, foi tragado pelo dogmatismo cego e preconceituoso, mas do qual já me libertei, e me sinto bem e feliz.
Hoje me enquadro como um liberal social, alguém que acredita que a democracia e justiça social são o único caminho para uma sociedade melhor para todos os brasileiros. Não o ultrapassado pensamento do Estado mínimo, mas o do Estado indutor do desenvolvimento e promotor da redução das desigualdades. Defendo uma sociedade em que a distância entre o que tem mais e o que tem menos não é o abismo da fome e da miséria, mas aquela que garante qualidade de vida digna a todos seus cidadãos e cidadãs (precisamos começar instituindo uma renda mínima universal).
É neste país de justiça social e econômica que a República vai, enfim, ganhar relevância neste País. É essa sociedade igualitária e democrata que quero defender pelo resto da vida.
É esta República que devemos construir e da qual, enfim, poderemos nos orgulhar.
CT, Palmas, 15 de novembro de 2022.