Assinei a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Não abro mão de viver numa democracia, de votar em quem considero apto a nos dirigir e representar, de ir e vir, de expressar minhas opiniões, de discordar e concordar. Todos devem desfrutar desses direitos, mesmo aqueles que defendem o extremismo que age por dentro de nosso sistema democrático e neste momento tenta destruí-lo. São analfabetos políticos, que ou viveram à distância os abusos normalizados naqueles tempos duros e, por isso, romantizam a ditadura que nos tolhia as liberdades mais básicas, ou, por não serem contemporâneos das agruras do autoritarismo, sequer fazem ideia do que se isso significou.
É surreal que em pleno 2022 tenhamos que repetir o ato de 1977, ano ainda da escuridão militarista, e reeditar uma carta em defesa da democracia. Quem pede a volta da arbitrariedade, o fechamento do Congresso e prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) revela um grau de ignorância que se um dia superar esse transe se envergonhará da própria burrice. Esses Poderes são perfeitos? Não podem ser criticados? Não só podem, devem ser alvo de crítica social, até para seu aperfeiçoamento.
Acho que os congressistas que estão aí não estão dispostos a fazer as reformas que o país precisa. No entanto, são a síntese do que somos como sociedade. Afinal, fomos nós que os escolhemos, pessoas, como todas as outras, que se formaram numa família, numa escola, numa igreja e ambientes sociais e profissionais. Então, são o nosso reflexo. Ao olharmos esse Congresso nos vemos diante de um espelho. Se não gostamos do que estamos refletindo, temos que nos repensar como cidadãos e sociedade. Aí mais uma vez a importância da democracia: a cada quatro anos nos é dada a oportunidade de corrigir nossos erros.
Não me agrada a Suprema Corte e os egos estratosféricos e o partidarismo de seus ministros. Não vejo nenhum político com moral para escolher membros para o Poder Judiciário nem mesmo para tribunais outros de Justiça e de contas. No entanto, respeito todos os poderes constituídos, e o sistema judiciário, com todos os seus defeitos, é fundamental para vivermos num Estado Democrático de Direito.
Se queremos mudança nesse modelo de composição das Cortes, que organizemos um movimento político para pressionar deputados e senadores a implantar outro formato de escolha de integrantes que desejamos. Se essa é uma vontade de parte maciça da sociedade, seremos ouvidos. Como disse o grande estadista Ulysses Guimarães, “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”. Temos, então, aí outra possibilidade que só a democracia nos dá para revigorarmos nossas instituições.
Agora fechar o STF? Prender ministros? É um absurdo pensarmos em jogar nossas vidas nas mãos de um autocrata. Quem pensa dessa maneira mudará a cabeça nos primeiros momentos de um regime despótico, quando, diante de uma injustiça, não tiver a quem recorrer.
Nem à imprensa, alvo da marcha da estupidez que segue em ritmo forte no Brasil. Quando alguém vê um direito seu atingido, a demora do judiciário, corre atrás de jornalistas para denunciar. E se não tivermos mais condições de publicar suas denúncias, insatisfações e desabafos. Se não gosta ou não confia nesse ou naquele veículo, não o leie, mude de estação, mude de canal. Essa é outra beleza garantida só pela democracia.
É importante compreender que o Estado Democrático de Direito contempla, com direitos e deveres, as várias vozes sociais, que representam segmentos diferentes, visões de mundo diferentes, valores diferentes. Essas vozes precisam ser ouvidas, mas também aprender a conviver mesmo na discordância, a respeitar o espaço das minorias, como homossexuais e religiões não hegemônicas, e até reconhecer dívidas histórias, contraídas no passado por ações absurdas e desumanas contra grupos, caso de indígenas e afrodescendentes.
É essa relação dialética, de polos totalmente opostos, que leva ao aperfeiçoamento social. A sociedade é um organismo complexo, não existem regras de convivência simplistas, muito menos um grupo deve ser calado por ser minoria para que apenas as vozes predominantes se sobressaiam.
Aí está outra beleza da democracia: ela garante espaço para que todos possamos viver plenamente para granjear nosso pão livremente, expressar nossas angústias e demandas, exercemos direitos assegurados e lutarmos pela felicidade na peregrinação por esta terra, que, por si só, já não é algo fácil. Por que jogarmos mais fardos para atrapalhar a caminhada do irmão por diferenças de opinião, raça, orientação sexual e religião? O pior de tudo: usando, na maioria das vezes, o nome de Deus em vão para justificar a opressão.
É na democracia que podemos delimitar o espaço para que cada um tenha o direito de buscar sua felicidade, sem preconceitos, sem sufocamento social.
É com democracia que o Brasil vai encontrar condições de desenvolvimento humano e de redução das abismais desigualdades sociais.
A democracia é como o ar que respiramos. Enquanto ela existir, viveremos sem sequer percebê-la. Mas quando faltar, nos sentiremos sufocados.
Sou defensor intransigente da democracia, de nossas instituições — mesmo delas discordando e as questionando — e de nossa Constituição Cidadã.
E é em nome do amor e respeito pela nossa Carta Magna que, para fechar essa reflexão, recorro novamente a Ulysses Guimarães, quando da promulgação do texto, em 5 de outubro de 1988:
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina”.
CT, Palmas, 11 de agosto de 2022.