A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) acerta ao escolher pela terceira vez o tema da fome em sua tradicional e sempre bem-vinda Campanha da Fraternidade. É inspirada nas palavras de Jesus como está em Mateus 14:16: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” Temos que repetir esse tema 200 vezes, se necessário, até que não haja um brasileiro sequer sem se alimentar.
De todas as mazelas deste País injusto, e não são poucas, a mais inaceitável de todas é que tenhamos irmãos sem direito a pelo menos três refeições diárias. Como bem frisou certa vez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil não é pobre mas injusto.
De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do total de domicílios do Tocantins, 45,5% estavam com algum nível de insegurança alimentar nesse período pesquisado, o que significa aproximadamente 750 mil pessoas de um contingente de 1,6 milhão de habitantes. Desses, 11,8% com insegurança alimentar moderada e 4,8%, grave.
Na época da sua divulgação, em 2020, o gerente da pesquisa do IBGE, André Martins, explicou que, quando um domicílio tem insegurança alimentar grave, há uma restrição maior de acesso aos alimentos, com uma redução da quantidade consumida para todos os moradores, inclusive crianças, se presentes. “E nesses lares pode ter ocorrido a fome, situação em que pelo menos alguém ficou o dia inteiro sem comer um alimento”, esmiuçou.
Se isso não o afeta, você tem um grave problema de ordem psicológica e espiritual. Entenda: no Estado em que você vive, em meio a uma sociedade que lhe garante condições dignas de vida, quase metade da população está em insegurança alimentar e parte desses irmãos, ao longo de toda esta quinta-feira, 23, simplesmente não terá nada para comer. Absolutamente nada. Então, você vai ao seu fogão e vê suas panelas cheias e na sua geladeira não existe mais espaço para estocar alimentos. Assim, hipocritamente, agradece a Deus e finge que todos desfrutam da mesma fartura.
E veja mais esses dados: na comparação com 2013, a última vez em que o tema foi investigado pelo IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a prevalência de insegurança quanto ao acesso aos alimentos aumentou nos lares tocantinenses. A insegurança aparecia em 37,5% dos domicílios do estado na PNAD 2013. Em 2017-2018 esse índice subiu para 45,5%.
No cenário nacional, o mesmo drama se repete: dos 68,9 milhões de domicílios particulares permanentes no Brasil, 36,7% (25,3 milhões) estavam com algum grau de insegurança alimentar: leve (24,0%, ou 16,4 milhões), moderada (8,1%, ou 5,6 milhões) ou grave (4,6%, ou 3,1 milhões). Segundo o IBGE, esse cenário foi proporcionalmente mais expressivo nos domicílios na área rural: lá, a insegurança alimentar grave atingiu 7,1% (676 mil domicílios), acima do verificado na área urbana (4,1%, ou 2,5 milhões de domicílios).
A região onde está o Tocantins, o Norte, enfrenta, conforme a POF 2017-2018, o maior drama no que diz respeito à insegurança alimentar, com 57% dos lares, seguido pelo Nordeste (50,3%). Também tínhamos os maiores percentuais de domicílios onde a fome esteve presente em pelos menos alguns momentos do período de referência de três meses estudados, com 10,2%, seguido de novo pelo Nordeste (7,1%) e depois Centro-Oeste (4,7%). Veja ainda: a prevalência de insegurança alimentar grave do Norte era cerca cinco vezes maior que a do Sul (2,2%).
Em 2020 chegou a pandemia, que quebrou milhares de empresas e desempregou milhões de pessoas. Assim, qual a possibilidade desse quadro ter se agravado? Com certeza, a situação hoje é muito pior.
Para além da ação solidária individual, sou ferrenho defensor de uma política de renda mínima universal. Não é possível admitir a reprodução e o agravamento desse quadro num país como o Brasil. Todo cidadão brasileiro deve ter acesso a pelo menos três refeições por dia, como tem direito ao oxigênio. Precisamos de um e de outro para viver.
Para isso, como sociedade, precisamos exigir que nossas camadas elitizadas paguem mais tributos naquilo que hoje é negligenciado ou que está em alíquotas mínimas, casos herança de milionários e bens de luxo. O sujeito pode comprar dez Ferraris e 20 mansões, é de seu direto. Mas tem, sim, a obrigação de contribuir sobre esse consumo supérfluo para a redução das desigualdades, e, mais do que tudo, para que todos possam ter direito ao mínimo, que é se alimentar.
Como afirmei nessa quarta-feira, 22, através de um profundo e amplo processo de inclusão social, construiremos um país mais justo e igualitário, dando dignidade a todos os brasileiros, e, por outro lado, garantiremos que a paz reine na sociedade.
Mais uma vez, esse imenso ser humano que é o Papa Francisco foi cirúrgico ao comentar sobre a fome em julho de 2021, na pré-cúpula sobre sistemas alimentares da ONU, em Roma, com representantes de mais de 110 governos do mundo, entre eles, o Brasil: “Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o pão de cada dia. Isso constitui um verdadeiro escândalo, um crime que viola direitos humanos básicos. Portanto, é um dever de todos extirpar esta injustiça através de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais ousadas”.
Esse é o pensamento de um verdadeiro cristão. O resto é se portar como um reles frequentador de igreja para aparecer como “gente de bem” para a sociedade. Ou, nas palavras de Jesus, um sepulcro caiado.
CT, Palmas, 23 de fevereiro de 2023.