Interessante ver que qualquer pessoa que demonstre preocupação social é logo taxada pela extrema direita de “comunista”. Se estiver de vermelho, então, complicou: prova cabal de que se trata de um discípulo de Karl Marx. Quem? Tenho mais do que absoluta certeza de que 99,99% dos apedeutas que “xingam” os divergentes de “comunista” não têm a mínima noção de quem foi esse filósofo e economista alemão.
Nestes tempos obscuros vivemos o ápice da demonstração de uma ignorância que eu não imaginava estar entranhada tão profundamente em nossa sociedade. Semana passada, quando Arcebispo de Aparecida, Dom Orlando Brandes, no Dia de Nossa Senhora, alertou sobre os “dragões” do ódio, mentira, desemprego e fome que o país vem enfrentando, provocou o maior alvoroço nos malucos que tomavam a basílica e o Santuário da Padroeira do Brasil, em arruaças movidas a cervejada.
O cúmulo da ignorância dessa época insana ocorreu nessa segunda-feira, 17, com o cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, no alvo de ataques bolsonaristas fanáticos nas redes sociais, por causa da vestimenta, veja, vermelha, própria de sua hierarquia eclesiástica. Foi chamado, de novo, de “comunista”, apontado como aliado de Lula e acusado de apoiar o aborto.
Como o religioso mesmo explicou, o vermelho simboliza o sangue, “o amor à Igreja e prontidão ao martírio, se preciso for”. Dom Odílio, então, foi no âmago do grande mal do nosso tempo: “Conheço bastante a história. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo”. O problema, dom Odílio, é justamente este: os ignorantes não conhecem história e, como neandertais, agem pelo instinto.
A predominância da pauta de costumes e a ideologização rasa e tosca do debate eleitoral de forma totalmente emburrecida, como os poucos exemplos acima demonstram (porque são muitos), na verdade, visam esconder o que importaria discutir neste segundo turno: os rumos da economia, as questões ambiental e social; e ainda o futuro da democracia.
O governo Jair Bolsonaro (PL) é a maior tragédia que se abateu sobre o Brasil. Foi a tempestade perfeita: um presidente totalmente desqualificado, ignorante, preconceituoso, bélico, disseminador de ódio, anticiência, num tempo de pandemia, o que exigia um estadista à frente da Nação, não um homem sem qualquer envergadura para missões de tal porte. Que desastre! O resultado está aí: quase 700 mil brasileiros mortos pela omissão, pelo mau exemplo, pela obtusidade.
Mas o desastre extrapola o campo da saúde pública: não temos um plano econômico para reagir ao pós-pandemia. Tudo se faz no improviso e visando o calendário eleitoral. Pela total incompetência, estamos perdendo as conquistas do Real. Como tem sido observado por especialistas, a queda da inflação foi fabricada artificialmente por estímulos e isenções, como o caso da redução do ICMS para segurar o preço dos combustíveis. Se por um lado, a inflação caiu para 4,09% ao ano com três deflações, de outro, a alta dos alimentos tem castigado as famílias e está em 10,89%. Se de forma artificiosa a gasolina registrou queda de 26% no ano, os consumidores pagam 50% a mais pelo leite longa vida.
Agora, após 15 semanas consecutivas de queda, o preço da gasolina voltou a subir no Brasil, segundo pesquisa da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), divulgada nessa segunda-feira, 17. O valor médio do litro passou de R$ 4,79, entre os dias 2 e 8 de outubro, para R$ 4,86 na semana entre 9 e 15 deste mês, uma alta de R$ 0,07 ou quase 1,5%.
O jornalista que cobre o mundo de Genebra (Suíça) para o UOL, Jamil Chade, é um profundo conhecedor dos bastidores das Nações Unidas. Ele contou num carta a Bolsonaro há coisa de duas semanas que, para grande parte dos líderes internacionais, o presidente do Brasil “é um bufão”. “O senhor armou milhares de pessoas em três anos, com mentiras e balas. O senhor destruiu pontes e criou inimizades com alguns dos nossos principais parceiros comerciais. Há um consenso na opinião pública internacional de que o senhor faz parte de uma das aberrações do século 21 e reflexo do colapso moral de nossa geração”, afirmou.
Chade ainda lembrou que Bolsonaro “esbarrou com Tony Blair, num dos corredores de Davos”. “Sem saber o que fazer, ele [Blair] aceitou uma foto ao seu lado. Mas assim que ela foi divulgada, a assessoria do ex-primeiro-ministro do Reino Unido teve de dar explicações diante do constrangimento e das críticas que recebeu”, escreve o jornalista numa referência ao Fórum Econômico Mundial de Davos de 2019.
Ele então revelou uma série de fatos que testemunhou e que ilustram a imagem que a comunidade internacional tem de Bolsonaro: “Ninguém me contou. Eu vi como embaixadores estrangeiros na ONU debochavam das decisões que o senhor mandava aos diplomatas brasileiros. Ninguém me contou. Eu vi como, no auge da pandemia, a cúpula da OMS chamava o senhor de ‘louco’”. E prosseguiu: “No Parlamento Europeu, o senhor é tratado abertamente como ‘irresponsável’ e ‘neofascista’. No Senado americano, seu nome é sinônimo de ameaça à democracia”.
Ou seja, Bolsonaro transformou o Brasil num pária internacional. E, por óbvio, isso vai ter consequências econômicas, a médio e longo prazos, e a parte da elite que hoje dá vivas a Bolsonaro logo arcará também com as consequências de manter no poder uma pessoa tão desacreditada diante do mundo e despreparada para governar.
O atual presidente é uma ameaça ao meio ambiente. O Brasil tinha o compromisso com o mundo, destaca também o próprio Chade em outro artigo, de desmatar em 2020 no máximo 3.925 km² da Amazônia, mas derrubou 10.851 km² de florestas, ou seja, 176% acima da meta. Em 2021, essa destruição subiu para 13.038 km², ou 232% acima da meta.
O Observatório do Clima lembra que Bolsonaro assumiu o país com uma taxa de desmatamento de 7.500 quilômetros quadrados em 2019 e elevou para 13 mil quilômetros quadrados.
Além disso, há desmonte de políticas sociais nas mais diversas áreas. Bolsonaro cortou, por exemplo, em 90% a verba destinada ao enfrentamento da violência contra a mulher durante o seu mandato.
Ainda há o risco à democracia, com a ameaça de venezuelização através do aumento do número de ministros do STF, como fez Hugo Chávez, a ditadura militar brasileira e o autocrata da Hungria, Viktor Orbán. Com o Congresso já devidamente comprado pelo Orçamento Secreto, se Bolsonaro ampliar o número de apaniguados na Suprema Corte será o fim do curto período de democracia iniciado em 1985. Sem tanques nas ruas.
Concluo trazendo a recomendação do cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, ao demonstrar sua preocupação com ascensão do fascismo no Brasil: “É preciso ter muita calma e discernimento nesta hora!”
Temos muito a perder se o Brasil continuar caminhando esse mesmo trilho do obscurantismo. Ainda dá tempo de desviarmos dessa rota.
Viva a democracia!
CT, Palmas, 18 de outubro de 2022.