A história da nossa Independência sempre é tratada de forma jocosa pelo cinema e por nossa intelligentsia. No entanto, a luta para nos tornamos um país livre é motivo, sim, de orgulho nacional. Tínhamos tudo para dar errado. Um imenso continente que acabou conseguindo manter sua unidade pela ação de importantes homens públicos, a exemplo de José Bonifácio de Andrade Vieira, como afirma Laurentino Gomes, em seu “1822”, “um homem sábio experiente”, que “defendia o fim do tráfico negreiro e a abolição da escravatura, reforma agrária pela distribuição de terras improdutivas e o estímulo à agricultura familiar, tolerância política e religiosa, educação para todos, proteção das florestas e tratamento respeitoso aos índios”. Como se vê, temas muito atuais em pleno século 21 defendidos há nada menos do que 200 anos.
A declaração de Independência de Dom Pedro I deu início a uma série de conflitos armados, como ocorrido na Bahia em 2 de julho de 1823, com mais de 2 mil mortos.
No entanto, o grito de “independência ou morte” do príncipe regente, no riacho do Ipiranga, a 7 de setembro de 2022, não teve a elegância nem o fogoso alazão pintado meio século depois por Pedro Américo. O escritor Laurentino Gomes conta na sua obra já citada que o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, testemunha deste evento histórico, citou que o futuro imperador estava sobre uma “bela besta baia”. Outra testemunha, coronel Manoel Marcondes de Oliveira Melo, fala de uma “baia gateada”. “Em outras palavras, uma mula sem nenhum charme, porém forte confiável”, arrematou o autor de “1822”.
Mas não era só isso. O mesmo coronel Marcondes usou um eufemismo para descrever a situação do então príncipe regente, que, segundo disse, “a intervalos regulares, se via obrigado a apear do animal para prover-se no denso matagal que cobria as margens da estrada”. Ou seja, o futuro imperador do Brasil e rei de Portugal estava com uma tremenda dor de barriga.
A despeito de cólicas intestinais e de mulas sem qualquer charme, fato é que, a partir daquele dia, o Brasil se tornaria um país independente, senhor do seu próprio destino e, entre os erros e acertos históricos, produzidos por homens e mulheres e atuaram nas esferas pública e privada, chegamos até aqui.
Mesmo com as imensas disparidades que ainda precisamos superar, graves injustiças sociais, um preconceito racial enraizado até hoje na própria estrutura de poder, direitos das mulheres que devem ser reconhecidos de fato, respeito às diferenças de orientação sexual e de religião a ser assimilado pela maioria do nosso povo, também é fato que construímos um país forte, rico (ainda que injusto, como bem observou anos atrás o então presidente Fernando Henrique Cardoso), moderno e de relevância internacional.
Assim, mesmo com os avanços que reconhecidamente ainda precisamos fazer, teríamos muito o que comemorar neste bicentenário da Independência do Brasil. Porém, não foi possível a ampla celebração desta efeméride por conta dos tempos sombrios que nos tomaram de assalto, dividiram os brasileiros e colocaram o ódio como política pública de estado.
Não tenho a menor dúvida de que este é o momento mais baixo da história do Brasil, com o total desprezo à educação, à cultura, à ciência e à própria política maiúscula que deveríamos estar praticando no auge desta que deveria ser a nossa maturidade, após 200 anos de relacionamento, como nação independente, entre nós e com o mundo.
O obscurantismo que tomou conta do país tornou o Brasil um pária internacional. O respeito que o mundo sempre teve com esta nação foi jogado por terra pela insanidade, pela incivilidade e pelo desvirtuamento de nossa diplomacia, que, de elevadíssima qualidade, ao longo do tempo ocupou lugar de grande referência por todo o planeta, e hoje se vê humilhada e ridicularizada.
Não há menor dúvida de que erramos absurdamente há quatro anos, quando colocamos para dirigir nosso destino uma pessoa que era muito menor do que o cargo que passaria a ocupar. O presidente Jair Bolsonaro foi um aborto da história brasileira, que precisa ser extirpado do poder pelo voto antes que jogue em definitivo nossa nação nesse abismo da ignorância, do desprezo à civilização, do ressentimento que ele tem em relação a tudo o que diz respeito aos valores iluministas que marcam o mundo moderno.
O início do Brasil como país independente teve os seus improvisos, como a mula que transportava o príncipe regente, imerso em suas cólicas intestinais. Mas nossa história, cheia de erros, é verdade, e também de muitos acertos, é motivo de orgulho a todos os brasileiros e brasileiras neste momento em que comemoramos este bicentenário.
Bolsonaro, no alto da sua indignidade para o cargo imenso que ocupa, vai passar. Terá a devida resposta neste 2 de outubro e ocupará poucas linhas em nossos livros de história. Restará dele apenas uma pequena mancha da vergonha e de uma época em que submergimos na escuridão do ódio e da ignorância. Mas, acredito, esta experiência surreal servirá para o aperfeiçoamento de nossas instituições, de nossas leis e de nossa democracia.
Viva o Brasil!
CT, Palmas, 7/09/2022.