A teor do disposto nº artigo 1º, I, g, da LC no 64/1990 (Lei das Inelegibilidades), são inelegíveis para qualquer cargo aqueles “que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos oito anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal[1], a todos os ordenadores de despesas, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.
A par disso, nota-se que um dos requisitos para a incidência da referida causa de inelegibilidade é a existência de decisão irrecorrível proferida pelo órgão competente para o julgamento das contas referentes ao exercício de cargos ou funções públicas que detenham em suas atribuições a ordenação de despesas.
Importante destacar que em se tratando de contas públicas, duas espécies são destacadas para os fins do presente estudo, quais sejam: as de gestão[2] e de governo.
Nesse recorte, as contas dos ordenadores de despesas (gestão), excetuadas as dos prefeitos, são julgadas, privativamente, pelas Cortes de Contas. Ou seja, a partir deste julgamento, podemos perquirir os requisitos da elegibilidade sem prejuízo de convalidação pelo Poder Legislativo local.
Em contrapartida, em se tratando dos chefes dos Poderes Executivos Municipais, ambas as espécies de contas são julgadas, privativamente, pelas Câmaras Municipais, cabendo ao Tribunal de Contas apenas a emissão de parecer prévio (artigos 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, 25, 31, 49, inciso IX, 71 e 75, todos da Constituição).
Corroborando tal conclusão, recentemente o STF fixou tese – em caráter de repercussão geral – no sentido de que a inelegibilidade dos Chefes dos Poderes Executivos prevista no artigo 1º, I, g, da LC no 64/1990, somente se operaria após deliberação do respectivo Poder Legislativo (Recursos Extraordinários 848826 e 729744).
Tal entendimento foi igualmente recepcionado pelo Tribunal Superior Eleitoral reforçando que compete à Câmara Municipal o julgamento das contas prestadas anualmente pelos prefeitos, esclarecendo ainda que essa competência não se modifica na situação em que o prefeito atua como ordenador de despesas (AgR-REspe nº 174-43/PI[3]).
Apresenta-se, entretanto, como exceção à regra de competência do art. 31 da CF/1988, o julgamento dos convênios firmados entre município e outro ente da Federação. Isso porque, nessas situações, o órgão competente para deliberar sobre as contas prestadas pelos prefeitos serão os Tribunais de Contas e não a Câmara Municipal (TSE/ AgR-REspe nº 101-93/RN).
Ainda com relação às contas de responsabilidade dos prefeitos, vale destacar que eventual omissão ou morosidade nos julgamentos não importam em convalidação dos pareceres-prévios exarados pelos Tribunais de Contas, qualquer que sejam os resultados.
Isso quer nos dizer algo bastante claro, não há no ordenamento jurídico brasileiro – no quesito julgamento de contas – o sistema da aprovação/rejeição ficta das contas, ou seja, convalidação da opinião do Tribunal de Contas pelo decurso de tempo (TJMG – Adin n.12643/3 c/c RE 729744 STF).
Esse entendimento se aplica tanto para o desenvolvimento da competência institucional do Tribunal de Contas no tocante a emissão de parecer-prévio, quanto para sua análise pelo respectivo poder legislativo.
Vale ainda dizer que pelo princípio da simetria e hierarquia vertical das normas, entende-se por nulo qualquer espécie normativa que contrarie a Constituição no sentido de regulamentar julgamento ficto das contas anuais.
Constata-se, portanto, ser imprescindível o julgamento expresso da Câmara Municipal a respeito das contas apresentadas, ainda que lei orgânica determine que a ausência de decisão do Poder Legislativo Municipal sobre as contas de prefeito permitirá que prevaleça o parecer técnico emitido pelo Tribunal de Contas (AgR-REspe nº 127-75/SP).
Outra ressalva que merece destaque consiste no fato de que entendemos por impossível o julgamento das contas dos chefes dos poderes executivos à revelia do respectivo parecer-prévio exarado pelos Tribunais de Contas. A razão é simples. Ao contrário do que possam asseverar, os pareceres dos Tribunais possuem certa força vinculativa, já que somente são superados – para aprovar ou rejeitar – mediante deliberação de dois terços do legislativo (§ 2º do art. 31, da Constituição Federal).
Até aqui, em resumo, temos como certa a conclusão de que até que haja deliberação definitiva por parte do legislativo, não há o que se cogitar a inelegibilidade dos chefes dos poderes executivos pela mera expedição de parecer-prévio dos Tribunais de Contas.
Traçadas essas diretrizes gerais acerca da temática, nos direcionamos ao mote do presente estudo que consiste na aferição no que tange às rejeições de contas e seus efeitos na elegibilidade.
Faço um recorte para advertir que é indene de dúvidas de que o simples julgamento pelas cortes de contas já se mostra suficiente para configuração de inelegibilidade dos ordenadores de despesas, à exceção dos chefes dos executivos.
Pois bem, conforme já assentado, destaco que o texto normativo entalhado no artigo 1º, I, g, da LC no 64/1990 é claro no sentido de traçar as diretrizes objetivas para configuração da inelegibilidade, notadamente para os casos de rejeição de contas.
A jurisprudência, em consonância com o dispositivo acima mencionado, vem decidindo pela incidência da inelegibilidade pelo prazo de oito anos, por exemplo, para aqueles que tiverem suas contas rejeitadas – pelos Tribunais de Contas e/ou Câmaras, a depender do caso – quando da ocorrência de irregularidade insanável devidamente reconhecida. (AgR-REspe nº 18419 TSE)
Destaco igualmente que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já se pronunciou sobre os requisitos objetivamente previstos na norma e seu cotejo no caso concreto para fins de aferição da elegibilidade do candidato, tendo assentado as seguintes diretrizes:
- Existência de rejeição de prestação de contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas; e
- Que os gestores tenham agido como ordenadores de despesas; e
- Seja a irregularidade insanável; e
- Que haja decisão irrecorrível do órgão competente rejeitando as contas prestadas; e
- Que a conduta praticada seja “ato doloso” de improbidade administrativa;
- Que o parecer do Tribunal de Contas não tenha sido afastado pelo voto de 2/3 da Câmara de Vereadores; e
- Inexista provimento judicial suspendendo a decisão.
Dessa forma, temos que nem sempre a reprovação de contas pelo Poder Legislativo ou Tribunal de Contas importa em inelegibilidade. Isso porque, conforme destaquei, os requisitos são cumulativos. Por exemplo, destaco que não gera inelegibilidade a reprovação de contas com base em déficit orçamentário apontado pelo Tribunal de Contas, quando nos anos posteriores há superávit (Recurso Ordinário nº 50406 TSE).
Ademais, ocorrendo a rejeição de contas até o registro de candidatura, é possível que a inelegibilidade seja arguida através de Ação de Impugnação de Registro de Candidatura a Cargo Eletivo – AIRC, que pode ser oposta por partido político, candidato, Ministério Público ou coligação devidamente formalizada.
A reforma eleitoral trazida pela Lei Federal 13.877, de 27 de dezembro de 2019, trouxe, ao nosso sentir, uma modificação inoportuna, equivocada em seus próprios termos e até inconstitucional, é que a referida lei alterou a redação do artigo 262 do Código Eleitoral, fazendo constar o impedimento de arguir a inelegibilidade superveniente – aquela ocorrida após o registro da candidatura – pela via do Recurso Contra Expedição de Diploma – RECED: “§ 1º – A inelegibilidade superveniente que atrai restrição à candidatura, se formulada no âmbito do processo de registro, não poderá ser deduzida no recurso contra expedição de diploma.”.
Ou seja, por enquanto a categoria jurídica da “inelegibilidade superveniente” deixa de existir. Isso importa no fato de que o candidato que, por exemplo, tiver suas contas rejeitadas e que incorra em inelegibilidade possa concorrer e assumir o mandato, caso essa situação ocorra após o respectivo deferimento do registro de candidatura, situação que outrora era combatida pela via do RECED.
Há discussões relevantes do ponto de vista democrático que prega a pluralidade de candidatos, contudo, do ponto de vista da moralidade administrativa que trás a necessidade de probidade para a assunção a cargo eletivo vemos como principal fundamento para a inconstitucionalidade das alterações trazidas pela Lei Federal 13.877/2019.
Havendo rejeição de contas, importante observar que é assegurado pelo ordenamento jurídico que a qualidade, acerto ou desacerto das decisões possam ser revisitadas através de ação própria junto ao judiciário comum (art. 239 do CPC), não podendo tal perspectiva ser aferida no bojo de processo de registro de candidatura na justiça eleitoral.
À guisa de conclusão, ainda é importante dizer que a inelegibilidade limita-se à eleição pretendida e nos oito anos subsequentes à decisão. Isso porque, se trata de situação intrínseca à pessoa, ou seja, mesmo com o desenvolvimento de outros pleitos eleitorais que não o inicialmente pretendido, o reconhecimento da inelegibilidade perdurará até o cumprimento da reprimenda.
No mesmo sentido, a inelegibilidade resultante da procedência da representação de que cogita o art. 22 da LC 64, de 1990, alcança, enquanto sanção de inelegibilidade, às eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou o ato combatido. Veja que aqui o termo a quo faz menção a eleição, não ao trânsito em julgado da sentença respectiva. É a induvidosa conclusão do inciso XIV do mesmo art. 22, precitado.
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CLEYDSON COSTA COIMBRA
É advogado e contador, pós-graduado em Direito Eleitoral, Tributário, Advocacia Pública Municipal, Gestão Pública e pós-graduando em Direito e Processo Constitucional.
cleydson_coimbra@hotmail.com
[1] Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
(…)
II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
(…)
[2] O art. 80, § 1°, do Dec.-Lei no 200/1967 define como ordenador de despesas “[…] toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou pela qual esta responda”.
[3] Rel. Min. Henrique Neves, PSESS de 6.12.2012.