Vox populis vox Dei! Traduzida para o português como “A voz do povo é a voz de Deus”, esta expressão é bem antiga. Seus primeiros registros estão em uma obra medieval de um autor chamado Alcuíno, que num techo de sua obra ele diz: Nec audiendi qui solent dicere, Vox populi, vox Dei, quum tumultuositas vulgi semper insaniae proxima sit. Eis o verdadeiro significado de tal ditado: “Não devem ser ouvidos os que costumam dizer que a voz do povo é a voz de Deus, pois a impetuosidade do vulgo está sempre próxima da insânia”.
A voz do povo se faz ouvir tanto pela repetição contínua de determinada ideia, de tanto ouvi-la, as pessoas acabam por acreditar nela ou pelo chamado “clamor das ruas”, quando uma multidão se junta para cobrar determinada medida, como aconteceu no Brasil, no “Movimento das Diretas Já”, em 1984, ou mais recentemente, nas manifestações pelo impeachment da Presidente Dilma.
É por óbvio que nas decisões políticas a fundamentação maior, o fato motivador por excelência é a opinião publica, até porque, o corpo representativo, tem como razão de sua existência, ser o filtro processador da vontade popular. Todavia, as decisões jurídicas, requer de fundamentação legal e principiológica, para sua adequada solução dos conflitos sociais.
[bs-quote quote=”A concessão de Habeas Corpus ao ex-Presidente Lula, voluntária ou involuntariamente, acabou por ser o marco que desencadeará inevitavelmente o desfecho no sentido de reformular a aplicação da presunção de inocência” style=”default” align=”left” color=”#ffffff” author_name=”RAUCIL APARECIDO” author_job=”É mestre em Direito Constitucional” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2018/03/Raulcil60.jpg”][/bs-quote]
No sistema democrático brasileiro os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são órgãos representativos do Estado, ao passo que os dois primeiros são escolhido pela via direta, o terceiro é constituído por seleção de técnicos, visto que o conhecimento jurídico não se coloca a prova da opinião popular, mesmo defendendo aqui, que todos irrestritamente devem sofrer o controle social.
É louvável e digno de reconhecimento o trabalho de investigação que a Operação Lava Jato vem desenvolvendo nos últimos anos, em destaque o brilhante desempenho Polícia Federal que a cada momento firma-se como instituição sólida e comprometida com os anseios sociais. No entanto, a promoção das denuncias são de responsabilidade do Ministério Publico no qual a palavra final fica por conta do Poder Judiciário, nessa sequencia programática de atuação é próprio das instituições receberem os olhares sociais na busca de respostas positivas aos feitos sob suspeição. Contudo, ao Poder Judiciário não compete medir-se pela influência externa, por mais que aparentemente estas sejam justificadas.
Em posição recente da Suprema Corte, em decisão apertada, admitiu a possibilidade de prisão na segunda instancia, no entanto, o tema voltou a discussão, em razão do julgamento do Habeas Corpus preventivo impetrado junto ao STF, com vistas a evitar a prisão em segunda instancia do ex-Presidente Lula. Sem entrar no mérito da questão, a Constituição Brasileira no artigo 5º LVII dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” em análise primeira verifica-se que não há dupla interpretação do texto constitucional onde o legislador originário elege o Principio da Presunção de Inocência como medida de segurança jurídica aos litigantes, qual seja pelo fato triplo grau de jurisdição garantir melhor e profunda análise do mérito de uma ação, seja pela fragilidade do sistema brasileiro de apuração dos fatos que ensejam as ações, o certo é que, o transito em julgado perfaz dispositivo de firmamento diante de evidência ou maior probabilidade de acerto ou de redução do erro judiciário.
A concessão de Habeas Corpus ao ex-Presidente Lula, voluntária ou involuntariamente, acabou por ser o marco que desencadeará inevitavelmente o desfecho no sentido de reformular a aplicação da presunção de inocência. Em virtude desse fato em específico, tens se falado nos últimos dias a cerca de movimentação, por meio de abaixo-assinado, de juízes e procuradores no sentido de sensibilizar o Supremo Tribunal Federal em manter o posicionamento.
É compreensível que o povo ou qualquer categoria organizada tem a liberdade e a iniciativa de manifestar-se perante os poderes constituídos buscando resultados e até influenciando em suas decisões, todavia, estamos aqui diante julgamento de um Tribunal Superior a frente de um julgamento face a um caso concreto.
Em nossa visão, não pode o Judiciário exercer o seu mister tomando como valor a eficiência da condenação, porque o seu valor básico é a segurança jurídica ou a coerência sistêmica, norteada pela legalidade.
Todas as vezes que a Justiça incorpora elementos estranhos à sua lógica, temos um esvaziamento das garantias, dos direitos fundamentais e da liberdade, e o sistema jurídico entra em crise. O Poder Judiciário, epicentro do Sistema Jurídico, deve exercer funções básicas, concebidas para uma sociedade estável, com normas padronizadas, claras e hierarquizadas, sendo a função instrumental, pela qual são composto os conflitos; função política, através da qual é exercido o controle social; e, por fim, uma função simbólica, com a qual socializam-se as expectativas quanto à interpretação das leis.
Não compreendemos como saudável para a democracia e para a legitimidade das instituições que as decisões judiciais se orientem pela comoção pública, é certo que o momento nos induz a pensar assim, onde o sentimento de impunidade reina sobre aqueles que praticaram crime de corrupção e dilapidaram o erário publico, entretanto, a Suprema Corte terá que se posicionar sobre a aplicação de um mandamento constitucional que repercutirá não só sobre aqueles que são suspeitos de corrupção, mas também todos os demais que respondem processo criminal pelos mais diversos crimes (roubo, furto, homicídio entre outros). Daí pode se pensar: “Ora que se dane! Se praticou crime que fique preso!” até aqui não vejo problemas, mas quando aquele que supostamente, digo supostamente, praticou um crime e não teve uma defesa eficiente ou mesmo foi confundido ou ainda praticou um crime e lhe foi imputado outro pela ineficiência do aparelhamento investigatório, enfim, juridicamente não se deve dizer que alguém é culpado sem antes ser devidamente processado e julgado com todos o mecanismos de defesa a ele inerente.
Aos operadores do direito não é adequado, compatível ou razoável assistirem pacificamente ou pior, promoverem qualquer tentativa de interferência na tutela jurisdicional, a magistratura é função nobre e com relevante carga de responsabilidade social, deve ser defendida no sentido da isenção, imparcialidade e liberdade de convicção.
Portanto, que o STF decida por conceder ou não HC ao ex-Presidente, que mantenha ou não o posicionamento da prisão em segunda instância, mas que o faça com isenção, sem influência de qualquer natureza, pautado tão somente nas leis, nos princípios e normas constitucionais e essencialmente comprometidos com suas funções públicas. O anseio popular è de combate ao desvirtuamento da função pública, ensejada pela corrupção, e se a fórmula que se adota no momento, è tentar induzir o posicionamento de magistrado, remete indubitavelmente ao pensamento que tentar fragilizar suas convicções è corromper sua decisão e logo è desvirtuar sua função. Assim, quando os valores se invertem, a representação política se abala, as instituições são pressionadas e a sede de condenação a qualquer custo reina sobre uma sociedade, deve-se ficar alerta: o direito corre perigo!
RAUCIL APARECIDO
É professor universitário e mestre em Direito Constitucional
professorraucil@gmail.com