Na quinta feira, 17, o Supremo Tribunal Federal retomou o debate sobre a possibilidade de o réu iniciar o cumprimento da pena quando condenado nos tribunais de segunda instância. Tal tema tem sido palco de dilemas já há alguns anos, sendo intensificado após a deflagração da Operação Lava Jato. Entretanto, as conquistas relevantes e inegáveis advindas dessa operação esbarraram nos preceito constitucional da presunção de inocência e, com este, disputaram e disputam espaço na aplicação do direito penal brasileiro, por sua vez, confundido com obstáculo e mecanismo de impunidade.
Mas afinal, o que diz a Constituição Federal sobre prisões? O artigo 5º inciso LXI diz “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente…” e no inciso LXVI que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Observando esses dois mandamentos constitucionais, indubitavelmente, o legislador originário, em seu dogmatismo, estabeleceu a prisão como excepcionalidade, impondo condições específicas para que ela aconteça, quais sejam o flagrante ou quando não admitir liberdade provisória ou fiança. Daí, pode-se extrair que não há impedimento para prisão a qualquer tempo, uma vez cumprido os requisitos legais.
[bs-quote quote=”O Estado Brasileiro foi fundado sob a égide do Estado Democrático de Direito, balizado por instituições e sistemas constitucionais que não podem cegamente ser desprezados” style=”default” align=”right” author_name=”RAUCIL APARECIDO” author_job=”É professor mestre em Direito Constitucional” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Raulcil-180.jpg”][/bs-quote]
Todavia, o que se discute é o início de cumprimento da pena nas condenações em segunda instância. Ora, cumprimento de pena não é prisão de caráter cautelar, pena é aplicada a quem, após o devido processo legal, foi considerado culpado por crimes tipificados no ordenamento penal. E o que diz nossa Carta Magna sobre ser culpado? Artigo 5º inciso LVII “ ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Não há obscuridade ou dubiedade no texto constitucional aqui apresentado, culpado somente depois do transito em julgado, ou seja, após ter esgotado todas as possibilidades recursais (Tribunais Superiores), assim, ordenando imperativamente as condições para o devido cumprimento da pena.
São vastos e fartos os argumentos que embalam as mais diversas fundamentações dos que defendem a constitucionalidade e os que lutam pela inconstitucionalidade da aplicação do início do cumprimento da pena nas condenações em segunda instância. Ao primeiro, embandeiram-se de que geralmente as decisões de segunda instância são apenas confirmadas nos Tribunais Superiores, assim, não iniciando o cumprimento da pena, seria só uma forma protelatória de garantir a impunidade de criminosos notadamente culpados. Ao segundo, invocam o princípio da presunção de inocência como sagrada garantia fundamental norteadora do Estado Democrático de Direito. Qual argumento deve prevalecer?
É claro e evidente que o povo brasileiro já está saturado de desmandos sociais, em todos os sentidos (violência, tráfico de drogas, roubos, furtos, agressão, corrupção, ineficiência dos organismos estatais, exploração e etc.) e que se busca a todo tempo, medidas mais rígidas que promovam resultados positivos e eficazes, que por sua vez, constrói uma opinião publica sedenta de vontade de correção imediata. Contudo, o Estado Brasileiro foi fundado sob a égide do Estado Democrático de Direito, balizado por instituições e sistemas constitucionais que não podem cegamente ser desprezados.
Assistindo a transmissão ao vivo da sessão do STF, momento em que doutos advogados posicionaram pela inconstitucionalidade do início de cumprimento da pena nas condenações em segunda instancia, ouvi diversos argumentos tais como: agressão a garantias dos direitos humanos; que prisão não garante redução da criminalidade, que a prisão representa afronta ao texto constitucional enfim, todos digno de respeitabilidade, porém, tem um argumento que não fora externado por nenhum dos juristas ali presentes ou mesmo pelos Ministros da Suprema Corte, o que sem nenhum sentimento de prepotência, mas sim, de contribuição didática, arriscaremos expor aqui.
É certo que direitos e garantias fundamentais são o pilar dessa discussão, entretanto, no nosso entendimento está sendo desprezado um item que considero tão importante quanto a preservação dos direitos civis, que é o respeito ao sistema jurisdicional adotado no Estado Brasileiro. Ora, se foram instituídas constitucionalmente três instâncias de julgamento foi no sentido único de garantir ao indivíduo que o Estado promoveria um método de julgamento que buscaria afastar o máximo a possibilidade de uma imputação equivocada, garantindo-lhe a revisão por órgãos de maior maturidade jurisdicional, permitindo ir a terceira instância de julgamento (Tribunais Superiores). Partir do princípio que estes, em termos gerais, só servem para confirmar condenações da segunda instância é desconstitui-los, reduzi-los a meros formalizadores de sentenças.
Por outro lado, imaginemos que nos casos em que o Tribunal Superior reforma uma decisão declarando o réu inocente, e este já teve o inicio do cumprimento da sua equivocada pena na decisão de segunda instancia, daí sugere a reflexão de que, se uma vez confirmada e declarada a inocência nos Tribunais Superiores, imputaria aos Tribunais de segunda instancia o erro judiciário? Creio que sim, pois se alguém inicia o cumprimento de uma pena sobre algo que provou posteriormente que não devia, tem todos os requisitos de buscar a reparação junto ao estado, pelo sofrimento e constrangimento injustos impostos por um sistema conflitante que pune primeiro e inocenta posteriormente, o que além da injustiça produzida geraria inúmeros pedidos de indenização o que oneraria o já extorquido e massacrado erário publico.
Portanto, é louvável a indignação popular face a impunidade, quando cobra atitude das autoridades na solução dos problemas sociais. De igual forma, é formidável a manifestação publica de exigir mudanças. Contudo, deve-se observar o espírito em que nosso sistema judicial foi erguido, e promover a reflexão se esse sistema atende as necessidade sociais, pois no sistema atual afirmo com convicção que é inconstitucional admitir o início de cumprimento de pena por condenação criminal na segunda instância. Espero que o Supremo Tribunal Federal coincida com nosso posicionamento e corrija essa distorção.
Por outro lado, defendo que, se é isso que a sociedade brasileira deseja, deve-se então mudar o sistema, e não remendá-lo com posicionamentos imediatistas, pois, agindo assim, estaremos estabelecendo um Estado cruel e severo que atira antes e pergunta depois.
RAUCIL APARECIDO
É professor universitário e mestre em Direito Constitucional
professorraucil@gmail.com