Há muito que coloco aqui minha opinião sobre as malfadadas emendas parlamentares. Vale para câmaras, assembleias e Congresso Nacional. Em síntese: é uma interferência descabida do legislativo na execução do orçamento, uma área que não lhes diz respeito [deputado e vereador são eleitos para fazer leis e fiscalizar o Executivo, e ponto]; é privilegiar o interesse político-eleitoral do parlamentar em detrimento de prioridades muito maiores da sociedade; é o contribuinte pagando pré-campanha de deputado e vereador; é sufocar a democracia, porque a disputa eleitoral se torna desigual, uma vez que quem não tem mandato não pode fazer esse agrado à sua base; em consequência disso, não permite a oxigenação da representação pública; é resquício da ditadura, inclusive; é instrumento de compra de apoio pelo Executivo [essa conversa de que a emenda é impositiva não resolve a questão, porque o fluxo da liberação depende da subserviência do parlamentar]; é instrumento para amarrar prefeitos nas campanhas eleitorais de parlamentares; torna prefeito e governadores alvos de frequentes chantagens políticas, como vimos na última gestão Marcelo Miranda; ainda escancara as portas para a malversação de recursos públicos; entre outros tantos inconvenientes.
Assim, foi com muita surpresa que me deparei na manhã desta quinta-feira, 24, de muita correria sob o caos da mudança de minha residência, com a aprovação de alteração no Fundo de Recursos de Emenda Parlamentar Individual (Frep) para permitir a inclusão da tal “transferência especial” como uma das formas de destinar os recursos dessas emendas. A modalidade permite o repasse direto ao ente beneficiado, [pasmem!] independentemente de celebração de convênio ou de instrumento semelhante.
Pensei que havia entendido mal. Li, reli, consultei deputados, mas é isso mesmo. Essa tal “transferência especial” visa reduzir a burocracia, o que significa gerar facilidades no trânsito do recurso do contribuinte dos cofres do Estado para algum beneficiário da bondade. Se burocracia também é um mecanismo de segurança para marcar bem os rastros da verba pública para que se possa, quando necessário, segui-los e saber como foi utilizada, então, lascou-se.
Podemos usar a sigla do fundo para dizer, de forma onomatopéica, que o cidadão corre o risco de escutar apenas um “frep!”, e lhe restar apenas a pergunta: “Aonde foi parar o nosso dinheiro?”. “Frep!”
A destinação de emendas de deputados estaduais do Tocantins já virou caso de polícia. Em julho de 2019, foi deflagrada a operação ONG de Papel, da Polícia Civil, com quatro mandados de prisão temporária e 13 ordens busca e apreensão cumpridas em Palmas, Araguaína e outras cidades do Estado. Uma ONG teria recebido R$ 15 milhões em convênios com o governo durante três anos, com a singela e benévola missão de desenvolver atividades ligadas à cultura e à arte. Na verdade, conforme a PC, o que havia ali eram crimes de peculato-desvio, lavagem de dinheiro, fraude a licitações e organização criminosa. E olha que tinha convênio! E agora que nem isso terá?
Muito se diz que o desmonte do combate à corrupção na PC, do qual é acusado o ex-governador Mauro Carlesse (UB), também seria para beneficiar quem estava por traz dessas malversações das emendas parlamentares.
Claro que não se pode generalizar, e não tenho dúvida de que a maioria dos deputados usa as emendas de forma correta para beneficiar a população de pequenas cidades, principalmente — ainda, insisto, que de acordo com a conveniência eleitoral, não segundo um planejamento estratégico do Estado. Contudo, esse novo mecanismo, a tal da “transferência especial”, sobretudo num ano eleitoral, leva o risco de um imenso estrago no erário, ou seja, um alto e sonoro “frep!”, sob o fraquíssimo argumento de que no Congresso Nacional também é assim.
Com a tragédia de casos sequentes de corrupção que assistimos nesses últimos anos, a sociedade tocantinense está traumatizada. Assim, numa demonstração de alto espírito público, governo e Assembleia deveriam justamente evitar qualquer medida que pudesse aumentar essa apreensão da população neste momento sensível. Fizeram foi o contrário, com essa temerosa “transferência especial”, e justamente num bom momento do Palácio, que anuncia a adoção de boas práticas de governança pública. Sempre é bom lembrar o velho dito: a mulher de César tem que ser e parecer.
Os órgãos de controle precisam acompanhar pari passu essa suspeitíssima “transferência especial”. Não dá mais para ficar fechando janela e porta no Tocantins depois que o fulano passa e leva tudo e mais um pouco.
Se não estiverem muito atentos, TCE e MPE também vão escutar só o “frep!”
Palmas, CT, 24 de março de 2022.