Tenho muito orgulho de ser neto de um negro pelo lado materno. Infelizmente, a vida não me permitiu que conhecesse meu avô João. Nem minha mãe teve a oportunidade. Ferroviário, ele morreu num acidente de trabalho ao “cair sobre os trilhos do trem” — como sempre se convencionou contar em família — quando dona Alvina, minha mãe, tinha apenas um ano. Havia ainda outras três irmãs — minha amada tia Vivi, recém-nascida, e as mais velhas, uma delas especial. Essas últimas desencarnaram cedo e eu também não tive o prazer de conhecê-las.
Vô João e dona Angelina, minha avó materna, enfrentaram o preconceito da família por, em nome do amor, em plenos anos 1940, no interior paulista, decidirem se casar. Ela era filha de imigrantes italianos, olhos muito azuis, lindos. Após a morte de meu avô, dona Angelina, minha mãe e minhas tias conheceram o inferno. Um sofrimento absurdo se abateu sobre elas, discriminadas pela própria família. Afinal, não era tolerável ousar enfrentar tudo e todos para ficar com um negro. Pior ainda se dele se tornasse viúva. Numa sociedade absurdamente racista e machista, isso era pura nitroglicerina.
[bs-quote quote=”Em cerca de 350 anos, entre pouco depois de 1500 e 1850, mais de 12,5 milhões de seres humanos foram embarcados da África em direção à América como escravos, em 36 mil viagens de navios negreiros. Desse total, 10,7 milhões chegaram vivos e 1,8 milhão morreram na travessia por doenças e até suicídios” style=”default” align=”right” author_name=”CLEBER TOLEDO” author_job=”É jornalista e editor da Coluna do CT” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/09/CT-trabalhado-180.jpeg”][/bs-quote]
Contudo, com muita altivez, dona Angelina encarou os mais terríveis percalços, casou-se novamente anos depois e teve muitos outros filhos. No entanto, sempre levou uma vida de muito sofrimento, de extrema limitação material, que deu uma ligeira aliviada nos seus últimos anos, com a pequena ascensão financeira dos filhos, com quem terminou seus dias até desencarnar em meados dos anos 2000.
A história de luta de minha avó sempre me despertou admiração. Foi uma dessas heroínas anônimas que peitam o mundo com muita dignidade, mesmo diante do maior inimigo do ser humano ao longo dos milênios: a ignorância. Como poderia ter sido diferente a vida dela, de meu avô e meus tios e tias sem o preconceito que tenta diminuir a grandeza humana, que não está na cor da pele, na orientação sexual, no poder econômico, mas força da alma.
Tenho pensado muito em meu avô João e na sua luta com a vó Angelina nesses últimas semanas, com a leitura do maravilhoso Escravidão, o primeiro da série de três livros sobre o tema do jornalista Laurentino Gomes. Como seres humanos tiveram a capacidade de submeter seus semelhantes àquilo que estou lendo? Não dá para sequer imaginar. Termino os capítulos com a alma angustiada. Um dos que mais me derrubaram foi o que fala do Centro de Reprodução de Escravos, nos mesmos moldes daqueles para reproduzir gado. Terminei com lágrimas nos olhos. É inacreditável.
Em cerca de 350 anos, entre pouco depois de 1500 e 1850, mais de 12,5 milhões de seres humanos foram embarcados da África em direção à América como escravos, em 36 mil viagens de navios negreiros. Desse total, 10,7 milhões chegaram vivos e 1,8 milhão morreram na travessia por doenças e até suicídios, diante da depressão provocada pela terrível situação a que estavam submetidos. Laurentino conta em seu livro que o número de mortos nas viagens era tão grande que, segundo depoimentos da época, mudou o comportamento dos cardumes de tubarões no Oceano Atlântico. Eles passaram a seguir os navios negreiros esperando os corpos serem jogados no mar.
Desses 12,5 milhões, só o Brasil recebeu 4,9 milhões de seres humanos vindos da África, 47% do total. Laurentino ainda ressalta que, para o País, foram enviados dez vezes mais homens e mulheres arrancados de suas terras do que para as colônias inglesas da América do Norte.
Outro dado estarrecedor: do Brasil eram os maiores traficantes de seres humanos. Não é à toa que nossa psicosfera seja tão carregada. Nosso crime histórico é impagável, até imperdoável. Não estamos falando de pessoas que decidiram vir para o Brasil, ainda que sob pressão de regimes totalitários ou até fome, mas daqueles capturados à força, arrastados de suas casas, famílias e comunidade e levados para um mundo estranho, inóspito, cercado de humilhações, dor, sofrimento e todo tipo de mal. Existem ainda os que se opõem ao mínimo de contrapartida que um país com essa dívida desumana deve dar a quem tudo foi tirado.
Neste Dia da Consciência Negra, minha homenagem à memória do avô que não conheci, da mulher que enfrentou o racismo e a ignorância de sua época em nome do amor e a todo afrodescendente, entre os quais me incluo. Que o mesmo amor de dona Angelina seja o que nos mova em direção a um mundo de paz, harmonia e igualdade.
CT, Palmas, 20 de novembro de 2019.