A ADPF 828 entrou em cenário nacional no período pós pandemia, a princípio para discutir as questões voltas a reintegração de posse e despejos a serem realizados em ocupações iniciadas durante o período da pandemia, onde essas medidas foram em parte suspensas em virtude da situação de crise sanitária.
Porém por iniciativa política de alguns partidos, o objeto dessa ADPF foi tão dilatado, que pode-se dizer criou quase uma nova espécie de “política fundiária” para reger a questão das Ações Possessórias e Despejos sobre imóveis rurais e urbanos, quando, em um dos polos da demanda, estiver presente uma coletividade, sendo que esse conceito de coletividade, encontra-se relacionado de modo indireto a grupos de pessoas em condição de vulnerabilidade social, ou ligadas a movimentos de luta por terra e moradia.
Toda essa situação foi tratada de modo mais detalhado em nosso artigo O ministro Barroso vai acabar com a propriedade privada? Pós-pandemia e reintegração de posse “humanizada”, publicado aqui também na Coluna do CT.
Nesse cenário emergiu ao palco do direito oriunda do próprio contexto da citada ADPF, uma figura criada pelo Min. Barroso, em sua decisão de 31/10/2022.
Essa figura são as Comissões de Conflito Fundiário, que seriam instaladas a priori na esfera do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.
Entretanto a comissão chefiada pelo CNJ adotou o nome de Comissão Nacional de Soluções Fundiárias e as chefiadas pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais são as Comissões Regionais de Soluções Fundiárias.
A figura dessas comissões, se criadas fora desse contexto, seria muito bem vinda e extremamente necessária, para atuar em cárter preventivo de conflitos e choques de interesse inerentes a questões fundiárias, auxiliando na gestão de inúmeros problemas que, inclusive, são oriundos da própria atuação deficitária do poder público.
Criação no âmbito federal
Embora a fatídica decisão que criou essas figuras tenha sido proferida em 31/10/2022, o CNJ só veio a disciplinar a matéria em 26 de Junho de 2023, por meio da Resolução n. 510 do CNJ, e determinou de modo tardio a instituição dessas comissões na esfera dos tribunais, em até trinta dias.
Mas, a realidade é que diversos Tribunais inclusive já implementaram, dentro dos limites de sua competência, suas próprias comissões, como por exemplo:
- TJAC: Portaria n° 2.725/2022;
- TJAL: Resolução 02/2023;
- TJAM: “Indisponível”;
- TJAP: Portaria n. 69322/2023;
- TJBA: AtoNormativo Conjunto n.04/2023;
- TJCE: “Indisponível”;
- TJDFT: PORTARIA GPR 3/2022;
- TJES: Ato Normativo nº 031/2023;
- TJGO: Decreto Judiciário nº 2.811/2022;
- TJMA: Ato da Presidência-GP nº 84/2022;
- TJMG: Portaria Conjunta da Presidência nº 1.428/2022; Portaria Conjuntar nº 1.474/2023;
- TJMT: Provimento TJMT/CM n.23/2023;
- TJMS: “Indisponível”;
- TJPB: Ato da Presidência nº 03/2023; Ato nº 43/2023;
- TJPE: Resolução 482/2022; Resolução 488/2022; Portaria 16/2023;
- TJPI: Portaria Conjunta n. 2/2023;
- TJPA: Portaria nº 1.364/2023-GP;
- TJPR: “Indisponível”;
- TJSC: Resolução GP n. 82, de 14/12/2022;
- TJSP: Portaria nº 10.097/2022;
- TJSE: “Indisponível”;
- TJTO: Portaria 2692/2022;
- TJRJ: Resolução GP n. 82/2022;
- TJRN: Portaria n. 148/2023;
- TJRR: “Indisponível”;
- TJRO: Ato Conjunto n. 7/2023-PR-CGJ;
- TJRS: Ato Conjunto nº 001/2023;
- TRF1: Portaria Presi 69/2023;
- TRF2: Resolução TRF2-RSP-2023/00024;
- TRF3: Portaria nº 3023/2023;
- TRF4: Resolução 274/2023; Portaria 477/2023; Portaria 646/2023;
- TRF5: Ato nº11/23;
- TRF6: Portaria Presi n. 69/2023;
A essas comissões criadas antes da Resolução é facultado a sua convalidação mediante ato administrativo da Presidência do Tribunal, desde que respeitada a composição mínima, prevista na resolução, de tudo devendo ser informado o CNJ.
Comissão Nacional de Soluções Fundiárias
Em âmbito nacional a comissão será sediada no CNJ, e será composta por 1 Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, que a presidirá, e no mínimo 4 magistrados, indicados pela Presidência do CNJ.
Conforme dispõe a própria normativa acima referida, esse órgão terá alguns objetivos a curto prazo, como por exemplo:
- Estabelecer protocolos para o tratamento das ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis, em imóveis urbanos ou rurais, objetivando auxiliar a solução pacífica de conflitos derivados dessas ações;
- Realizar visitas técnicas nas áreas objeto de conflitos fundiários coletivos, em apoio às Comissões Regionais, elaborando o respectivo relatório, enviando-o ao juízo de origem para juntada aos autos;
- Agendar e conduzir reuniões e audiências em apoio às Comissões Regionais, entre as partes e demais interessados, elaborando a respectiva ata;
- Emitir notas técnicas recomendando a uniformização de fluxos e procedimentos administrativos, além de outras orientações, em apoio às Comissões Regionais;
E outros objetivos, a longo e médio prazo, que são voltados a modernização e reestruturação do tratamento dado pelo poder judiciário aos conflitos fundiários, e da criação de uma nova consciência social, dentre eles:
- Desenvolver, em caráter permanente, iniciativas voltadas a assegurar a todos o direito à solução destes conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade, de modo a evitar a prática de ações violentas ou incompatíveis com a dignidade humana quando do cumprimento de ordens de reintegração e despejo;
- Incentivar o diálogo com a sociedade e com instituições públicas e privadas, e desenvolver parcerias voltadas ao cumprimento dos objetivos da resolução 510 do CNJ;
- Fomentar estudos e pesquisas sobre causas e consequências dos conflitos coletivos pela posse da terra e pela moradia, bem como o mapeamento e o seu monitoramento, a fim de auxiliar o diagnóstico dos casos e subsidiar a tomada de decisões administrativas e judiciais;
Em virtude disso vemos surgir o que o CNJ denomina uma “Política Judiciária para Tratamento Adequado dos Conflitos Fundiários de Natureza Coletiva”.
Comissões Regionais de Soluções Fundiárias
Em âmbito regional as comissões terão sede nos Tribunais, e serão compostas por 1 Desembargador, que a presidirá, e no mínimo 4 juízes escolhidos pelo Tribunal a partir de lista de inscritos aberta a todos os interessados.
De fato, são essas comissões na esfera dos tribunais que vão ser a linha de frente da implementação dessa nova política de solução de conflitos fundiários, e vão enfrentar uma árdua tarefa para com os juízes das comarcas, para apoiá-los na execução dos objetivos dessa nova política, e conseguir padronizar os procedimentos a serem implementados.
Dentre os objetivos diretos a curto prazo, que devem ser implementados no âmbito dos tribunais:
- Estabelecer diretrizes para o cumprimento de mandados de reintegração de posse coletivos;
- Executar outras ações que tenham por finalidade a busca consensual de soluções para os conflitos fundiários coletivos ou, na sua impossibilidade, que auxiliem na garantia dos direitos fundamentais das partes envolvidas em caso de reintegração de posse;
- Atuar na interlocução com o juízo no qual tramita eventual ação judicial, com os Centros Judiciários de Solução de Conflitos (Cejusc) e Centros de Justiça Restaurativa, sobretudo por meio da participação de audiências de mediação e conciliação agendadas no âmbito de processo judicial em trâmite no primeiro ou segundo grau de jurisdição;
- Realizar visitas técnicas nas áreas objeto de conflitos fundiários coletivos, elaborando o respectivo relatório, enviando-o ao juízo de origem para juntada aos autos;
- Agendar e conduzir reuniões e audiências entre as partes e demais interessados, elaborando a respectiva ata;
- Emitir notas técnicas recomendando a uniformização de fluxos e procedimentos administrativos, além de outras orientações;
Também serão objetivos dessas comissões, promover a mudança de tratamento dado a problemática do conflito fundiário por intermédio de:
- Mapeamento sistêmico dos conflitos fundiários de natureza coletiva sob a sua jurisdição;
- Interação permanentemente com as Comissões de mesma natureza instituídas no âmbito de outros Poderes, bem como com órgãos e instituições, a exemplo da Ordem do Advogados do Brasil, Ministério Público, Defensoria Pública, União, Governo do Estado, Municípios, Câmara de Vereadores, Assembleias Legislativas, Incra, movimentos sociais, associações de moradores, universidades e outros;
Superado esse tema, resta saber, como serão os procedimentos adotados por essas comissões de modo objetivo.
Procedimentos
O procedimento a ser adotado, consiste via de regra em três etapas bem definidas, quais sejam visita técnica, tentativa de solução consensual e reintegração de posse humanizada.
Abaixo, vamos tratar de modo sucinto acerca de tais procedimentos, na ordem em que devem se desenrolar, e de sua disciplina segundo a Resolução 510.
Visita técnica: É um procedimento de levantamento de dados que será realizado com a finalidade de ampliar a cognição da causa pelo Juiz e favorecer a criação de ambiente para conciliação ou mediação, durante essa visita técnica serão coletados dados relativos identificação da área, grau de ocupação antrópica, a quantidade de ocupantes, idade, sexo, estado de saúde desses ocupantes, condições de saúde no ambiente de ocupação, e a existência de uma possível hierarquia de grupo social. Esses quesitos variam de acordo com o fato de o imóvel ser ocupado com destinação rurícola ou urbana, e estão disciplinados de modo especifico no Anexo II da Resolução;
Tentativa de Solução Consensual: Se dará por meio de audiências de mediação ou de conciliação que poderão ser designadas de ofício ou mediante provocação de qualquer interessado, em qualquer fase do processo. Essa audiência será presidida pelo juiz que houver conduzido a visita técnica e serão intimados a comparecer todas as partes e interessados, representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública, preferencialmente, dos respectivos órgãos especializados em conflitos da natureza, procuradorias do Estado e do Município, representantes de movimentos sociais eventualmente envolvidos na ocupação, bem assim representantes de órgãos públicos e privados que atuem nas áreas correlatas ao litígio.
A realização da audiência de tentativa de conciliação será obrigatória em ocupações que tenham se consolidado a mais de um ano e um dia.
Reintegração de Posse: A expedição do mandado de reintegração de posse só será feita após a realização de audiência pública ou reunião preparatória, na qual serão elaborados o plano de ação e o cronograma da desocupação, com a presença dos ocupantes e seus advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de assistência social, movimentos sociais ou associações de moradores que prestem apoio aos ocupantes e o Oficial de Justiça responsável pelo cumprimento da ordem, sem prejuízo da convocação de outros interessados.
Essas medidas, deverão observar as vulnerabilidades sociais das pessoas afetadas e observar as políticas públicas habitacionais de caráter permanente ou provisório à disposição dos ocupantes, para a efetivação do plano de ação, o Município onde se localiza o imóvel será intimado para que proceda ao prévio cadastramento das famílias que ocupam a área a ser reintegrada, bem como para que indique o local para a sua realocação e as encaminhe aos órgãos de assistência social e programas de habitação. Após cumpridas as devidas cautelas, será expedido o mandado de reintegração de posse, com a recomendação para que o início de seu cumprimento não se dê no período noturno, em feriados ou datas comemorativas e em dias de muito frio ou chuva.
Conclusão
A Resolução em si é complexa, e cria uma espécie de microssistema que não será, de forma alguma, fácil de implementar, pois demanda uma mudança no modo de agir e pensar por parte do poder judiciário e dos demais órgãos do poder público, em especial o executivo municipal.
Imaginemos os problemas já enfrentados com a morosidade judicial, agora frente a necessidade de realização dos procedimentos acima citados antes da adoção de qualquer medida concreta?
Não é só a realização de uma visita técnica, é um diagnóstico do grau de ocupação da área disputada e situação social, econômica e de saúde dos ocupantes, é compreender a organização social dos mesmos e seus reais interesses e necessidades, verificando a natureza e grau de vinculo das partes com a área ocupada.
Quanto a realização das tratativas de solução consensual de conflitos, acredito que o poder judiciário está muito bem preparado para esse desafio, e já demonstrou isso ao longo dos anos, a conciliação e a mediação hoje em dia são bem aplicadas pelos juízes em todo o país, e ganham cada vez mais espaço, seja de forma individual, coletiva ou em massa nos mutirões de diversos tribunais.
Agora com relação as exigências necessárias, segundo a Resolução 510, para que se promovam os atos de reintegração de posse, no que diz respeito às incumbências do poder executivo, em especial o municipal em prol da implementação das medidas necessárias preservação da segurança e integridade das pessoas em condição de vulnerabilidade, a situação é ainda mais complicada.
O poder público, em especial o executivo em suas diversas esferas, não consegue organizar sequer o desenvolvimento urbano sustentável mesmo anos após a promulgação do estatuto das cidades, aliás sequer a Lei 6.766/1976 é cumprida…. No aspecto rural? Quantos assentamentos estão abandonados e sem destinação de recursos? Quantos assentados estão a anos esperando seus títulos de propriedade? Ou pela baixa da cláusula?
Então essa cooperação entre o poder executivo e judiciário, a fim de que o executivo garanta proteção social às pessoas que serão desalojadas, não será fácil, simplesmente porque se o poder executivo desempenhasse bem sua função, essas situações não existiriam.
Se isso fosse fácil no aspecto urbano não haveriam favelas, e loteamentos irregulares, e no aspecto rural não haveriam as invasões e luta por terra.
Resta ainda saber se essas determinações serão efetivamente cumpridas, ou se diante das dificuldades de implementação serão apenas um entrave a proteção possessória devida aos particulares, um obstáculo a tramitação do processo diante da impossibilidade de implementação, ou ainda em pior situação, se não serão ignoradas e aplicadas de ineficientes apenas para “cumprir tabela”.
Vejamos nos dias que se seguirão, qual será a efetividade das determinações do CNJ, e como essa situação irá se desenvolver no palco do direito.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; Advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; Membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio-ABA; Membro Consultor da Comissão de Relações Agrárias-OAB/TO; Especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
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