Ao ler o título desse artigo, o leitor menos atento às discussões se questionaria do que tem a ver “alhos com bugalhos”. Afinal, como poderiam fazer parte de uma mesma sentença o indivíduo, um projeto de lei e uma das maiores rivalidades históricas do futebol?
Mas eu explico
Para isso, retroajamos ao ano de 2018 e à polarização ideológica na qual ingressou o nosso País. Verdade seja dita, não só o Brasil, mas o mundo. E de lá pra cá, a polarização ultrapassou ao debate, virou paixão, rivalidade, tal qual a de um Fla-Flu de torcidas inflamadas.
Nessas condições, toda questão política, social ou ideológica passou a assumir uma dicotomia absolutamente incompatível com a essência do resultado almejado no amadurecimento de um debate ou análise. É lado A ou lado B, como se não houvesse cinquenta tons de cinza entre o branco e o preto. E isso contribui pouquíssimo para os ajustes institucionais dos quais depende o desenvolvimento da nação, o exercício das liberdades e da cidadania e o fortalecimento do arranjo democrático, sobretudo diante dos novos desafios que se acumulam a nossa frente como a digitalização das vidas, o uso da automação, das redes sociais e da inteligência artificial.
Não é segredo para ninguém a existência de uma imensa quantidade de conteúdo impróprio a circular pela Internet, e não está a se falar de deep web nem de ataque à liberdade de expressão e sim da exposição ostensiva de crimes como nos casos de perfis de facções criminosas, de grupos neonazistas com a postagem de pessoas empunhando armas de grosso calibre, outros voltados a cenas de violência, automutilação, incentivo ao suicídio, e consumo de drogas. Tudo isso está nas plataformas, todas elas. E esse problema não some só porque o usuário não está olhando, não basta o “dislike”. Pessoas influenciáveis são atraídas para aquele conteúdo e o coletivo dos que praticam o crime sente-se acolhido, estimulado à configuração real das práticas virtuais. A internet não é e não pode ser um território sem lei.
É nesse contexto que em 03/07/2020, muito antes da última eleição, o Senador Alessandro Vieira, à época filiado ao Cidadania/SE, propôs o Projeto de Lei n. 2630/20, o famoso PL das Fake News, e que não possui em nenhum de seus artigos, parágrafos ou incisos qualquer conceituação do que seriam as fake news, o que por si só condena o factoide do nome popularizado.
O PL é formalmente intitulado de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” e não pode ser encarado como uma iniciativa isolada ou solitária já que países como Alemanha, Austrália e Estados Unidos também se esforçaram na criação de um arcabouço legislativo próprio capaz de coibir os excessos da desinformação e no uso das redes sociais.
A iniciativa, que sofreu 153 emendas em seu texto original, tem como objetivo atingir a utilização de contas inautênticas, entendidas por tal aquelas criadas ou usadas com o propósito de assumir ou simular a identidade de terceiros para enganar o público; coibir a utilização das redes de distribuição artificial (comportamento coordenado e articulado por intermédio de contas automatizadas ou por tecnologia não fornecida ou autorizada pelo provedor de aplicação de internet); e o mau uso das contas automatizadas, geridas por tecnologia que simula a atuação humana na distribuição de conteúdo.
Além disso, o PL busca impor transparência aos provedores acerca de suas regras de moderação, permitindo ao usuário o conhecimento dos motivos do banimento de postagens ou perfis, bem como assegurando que se defendam contra a sanção.
A proposta também busca deixar claras as regras de impulsionamento de postagens, com a indicação dos seus financiadores, responsabilizando os provedores de redes sociais e de mensagens instantâneas privadas pelo mau uso das ferramentas que colocam a disposição do público.
Conforme seu texto, o PL visa complementar o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14).
Diante do proposto, não espanta que gigantes da tecnologia emitam notas contrárias à iniciativa, afinal exploram um mercado sem regras e, mais que isso, sem responsabilidades, principalmente frente aos danos decorrentes do mau uso de suas plataformas. A regulamentação exigirá delas esforços, estrutura e custos adicionais.
Se, por um lado, sob o fundamento da preservação dos segredos empresariais escondem suas lógicas algorítmicas e não possibilitam às autoridades o acesso a informações danosas, por outro lado, com a regulamentação, são chamadas a fiscalizarem suas próprias atividades e se responsabilizarem pelos desvios que sejam cometidos com o auxílio de sua negligência na tutela do uso esperado de suas plataformas, o que parece atender ao interesse público e resguardar seus segredos comerciais.
Há, contudo, pontos bastante sujeitos à crítica, dentre eles a imprecisão na conceituação do discurso de ódio, o que abre margem a subjetividades, e também a previsão de pagamento pela reprodução de conteúdo jornalístico, o que atinge o coração da Internet e das bigtechs.
Ao indivíduo cabe a reflexão com a mente aberta sobre a necessidade da intervenção legislativa. Exige-se da sociedade civil organizada conhecer da iniciativa e, nesse ponto, desintoxicada da influência das polaridades e com parcimônia, fazer seu juízo sobre a proposta, contribuindo, quando possível, para melhorias em seu texto, daí a importância da representatividade exercida pelos mandatários eleitos.
Não parece adequada a imposição da tramitação em regime de urgência. Não se trata de um juízo entre o sim e o não, uma escolha de torcida, mais um Fla-Flu entre esquerda e direita, uma queda de braço entre governo e oposicionistas. É sobre um importante ajuste institucional que ocupará uma lacuna de existência evidente e, nesse aspecto, algumas posições ainda demandam amadurecimento, uma cautela que parece válida para que no afã da busca por uma solução não se erga mais uma barreira de insegurança jurídica.
MARCUS SENNA CALUMBY
Advogado – Presidente da Comissão de Defesa do Patrimônio Publico e Combate à Corrupção da OAB/TO