Caro Pelé,
Minha relação afetiva com Vossa Majestade se deu através de meu pai. Seu Heitor era santista e “pelezista”, como meu avô, seu Leopoldino. Mas, sendo da geração que se encantou com a magia de Zico em campo, ainda criança, me tornei flamenguista.
No último evento nosso juntos, a final do paulista de 2015, meu pai e eu vimos deitados na cama dele o Peixe ser campeão. Sua aura, Rei, também estava ali presente. Já muito doente, seu Heitor desencarnou dois meses depois, sem nunca se esquecer, e de nos contar repetidamente, dos feitos de Vossa Majestade.
Foi muito bom dividir aquele momento com meu pai e representou um start para minha reaproximação com o futebol.
Fui um apaixonado por esse esporte da infância à adolescência, caro Pelé, desde meu primeiro contato com a seleção, em 1978, na copa que a Argentina ganhou, mas que nos deixou com uma pulga atrás da orelha. Em 1981, minha família se mudou para Porecatu, no interior do Paraná, eu já totalmente arrebatado por aquele dream team do Mengão, liderado por Zico, mas também com Júnior, Leandro, Lico, Mozer, Adílio, Marinho, Nunes, Tita, meu Deus! Que era aquilo, Rei!
Por essa época, meu tio Gilberto, um segundo pai para nós e ardoroso corintiano, deu para meu irmão do meio, Cláudio, e para mim uma camisa do Timão, que, por óbvio, me recusava a vestir. Como Sua Majestade sabe, o destino nos prega cada peça. Assim que chegamos à cidadezinha do interior do Paraná, queria um time para jogar. Foi quando conheci meu amigo Isaías, com que mantenho contato até hoje, pelas graças do Facebook. Ele tinha a equipe, mas para integrá-la era necessário vestir a camisa do clube do coração do dono. Claro, o Corinthians.
Tentei negociar em vão uma saída menos humilhante. Como era o único time da minha redondeza, precisei engolir o orgulho e vestir a camisa presenteada pelo meu tio, que, lógico, ficou orgulhoso de ver o sobrinho jogando pelo cover do Coringão.
Por essa época, a onda eram os cards do Pingue Pongue com os todos os jogadores dos clubes brasileiros. Vossa Majestade deve se lembrar. A gente gastava uma grana dos pais comprando o chiclete enorme e retangular para ter os cartões, que vinham com foto, nome e o clube do craque, de um lado; e, do outro, os dados completos, posição, histórico de times e curiosidades sobre o atleta. Disputávamos os cards no bafo, trocávamos os repetidos, enfim, Rei, faziam a nossa alegria. E sabíamos de cor os dados de cada jogador. Creio que deve ter até hoje um caderno com esses cartões colados na casa da minha mãe. Inclusive, descobri que valem uma grana para colecionadores. Na minha próxima ida a Maringá (PR) vou revirar os armários de dona Alvina.
Em 1982, quando fomos abatidos pela Azzurra, sob o comando de Paolo Rossi, nossa família já morava numa vila de operários da Companhia Energética de São Paulo (Cesp), na qual seu Heitor trabalhou por toda a vida, em Teodoro Sampaio (SP). O conjunto de casas era divisado por cercas brancas baixas de madeira. Ao sair revoltado da frente da TV preto e branco para a rua, vi que todos, vizinhos e eu, chorávamos à porta. Aquela foi a maior seleção depois da sua, Rei, em 1970. Nunca mais superada, nem pelas equipes campeãs de 1994 (retranqueira) e 2002.
Tornei-me – às favas com a modéstia – um grande goleiro, Majestade. Passei a ser chamado para jogar com os adultos nos meus 13 e 14 anos. Novo, mas já com mais de 1,80 metro. Seu Heitor não se continha em orgulho diante das grandes defesas que eu fazia compondo, claro, o time dele, e sob os rasgados elogios que recebia dos amigos sobre o meu desempenho embaixo da trave.
Meu pai passou a falar em me levar para uma peneira no clube profissional mais próximo e acessível a nossos parcos recursos da época, em Presidente Prudente, cujo nome era… Corinthinha. Sei que deve estar rindo, caro Pelé, mas é sério: o universo conspirava para eu virar corintiano, mas não me dobrei e me mantive flamenguista.
No copa do México de 1986, fomos tirados pela França de outro carrasco dos brasileiros, o craque Michel Platini, e meu apego pelo futebol foi se desfazendo. Não fui para o Corinthinha, nem para outro clube, e, infelizmente, comecei a me distanciar dos campos depois dos 16 anos para jogar vôlei e basquete.
Em 1990, cursava Economia, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, e me tornava um ácido crítico da sociedade exploradora-capitalista-hipócrita, para não fugir ao script traçado pelos hormônios de todo jovem. Nesse meu início de leituras mais sérias e profundas, nessa nova postura diante da vida, cometi o erro de passar a analisar o futebol olhando só para fora do campo.
Sua Majestade, sabe muito bem que é como contemplar as entranhas de um esgoto fétido. A partir daí fui me tornando mais e mais crítico e a desgostar da arte do futebol, até aquela final que assisti com seu Heitor, em 2015, para torcer pelo Peixe e ter o prazer de ver um pouco de alegria em meu pai nos seus últimos dias de vida.
Desde então, caro Rei, venho procurando não olhar mais para fora do campo, que continua com a mesma podridão de sempre, e sim para o que acontece dentro das quatro linhas (expressão que passei a odiar por conta do energúmeno que fugiu esses dias do Brasil, mas que se aplica literalmente nesse caso). Não quero saber o que faz a cartolagem nojenta, quero contemplar a arte pela arte, como a final histórica de Argentina e França, na Copa do Catar. Aquele jogo foi a maior homenagem que o futebol poderia fazer a seu Rei e maior jogador de todos os tempos. Foi mesmo pura arte.
Caro Pelé,
Nessa última copa consegui, após muitas tentativas, me reencontrar em definitivo com o esporte que só existe como é e grande como o vemos por conta do que Vossa Majestade fez ao longo de décadas, dentro e fora de campo. Me senti novamente como aquele garoto que o Isaías tentava convencer a vestir a intragável camisa do Corinthians, que saía da escola e ia bater bola, voltando já noite quando a mãe o buscava sob vara; que amava vestir meião, chuteiras e camisa do time — afinal, não existe momento mais mágico na vida de um menino.
Lembro-me do primeiro par de chuteiras que ganhei no aniversário (acho) de 13 anos. Meus pais compraram e esconderam no armário, e descobri por acaso onde estavam uns dois dias antes de recebê-lo. Que ansiedade absurda, Vossa Majestade! Toda hora ia lá escondido, desembrulhava e ficava namorando aquele símbolo do que há de mais fascinante para um moleque.
Infelizmente, sentimos, durante a copa, que não o teríamos por muito tempo, meu Rei. Essa carta, na verdade, queria escrever antes de sua passagem, contando essas histórias que mostram o quanto o futebol marcou profundamente a vida de um menino. Ainda que eu tenha me afastado desse esporte encantador na vida adulta, não tenho dúvida de que meus momentos mais felizes, grande parte da formação de meu caráter, as melhores e mais consistentes amizades, com mais de 40 anos de duração, e o aprendizado para encarar a vida com coragem e confiança, devo em grande parte ao futebol.
Por isso, não poderia deixar de agradecê-lo porque, se isso tudo ocorreu, é pelo muito que Vossa Majestade fez por este esporte universal.
Apesar da tristeza de vê-lo partir, foi com um orgulho imensurável de ser brasileiro – sobretudo depois de quatro anos sendo envergonhado diante do planeta por essa gente pequena e agora escorraçada de Brasília – que assistimos o mundo inteiro, seus principais líderes políticos, esportistas, artistas e megaempresários, reverenciá-lo como seu Monarca supremo.
Descanse em paz, Vossa Majestade. E muito obrigado.
Vida eterna ao Rei!
Cleber