Nos últimos dias, o país vem sendo sacudido por declarações do seu atual presidente e seu “staff político” de que há 55 anos atrás não teria ocorrido um golpe militar no Brasil. O estopim para essa discussão que não é apenas política, mas no campo da História, foi a orientação dada pelo presidente para que os quartéis pelo país comemorassem a data de implantação da ditadura: 31 de março.
Como sabe-se, o presidente é oriundo dos quartéis, embora tenha sido expulso dos mesmos quando ainda jovem, ao que parece, por indisciplina. Não era de se estranhar que hoje, como presidente, o mesmo queira apresentar a sua versão para o período em que o país viveu a ditadura, fruto do golpe que ele mesmo, atualmente como presidente, nega. A princípio, creio, é preciso pensar o acontecimento de 1964 sob dois prismas: o do acontecimento e o do fato histórico. Acontecimento é o momento em que algo ocorre e que, distante no tempo da gente, não conseguimos alterar, no máximo lembrar ou interpretar. O acontecimento é, portanto, a força que faz com que o cotidiano opere, ele ocorre a todo instante.
[bs-quote quote=”Vestígios de 1964, amplamente analisados e criticados, já foram interpretados e garantem, com absoluta tranquilidade, que o acontecimento/fato histórico ocorrido se caracterizou como um golpe militar e deu início há 21 anos de ditadura” style=”default” align=”right” author_name=”RAYLINN BARROS DA SILVA” author_job=”É doutorando e mestre em História ” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/01/raylinn-barros60.jpg”][/bs-quote]
Segundo o filósofo alemão Reinhart Koselleck, um acontecimento instaura um antes e um depois. Ele difere o acontecimento do que acontece, pois, o que acontece é infinito e o acontecimento é algo isolado. O que podemos deduzir dessa compreensão é que o acontecimento que mobilizou os quartéis em 1964 foi algo isolado, portanto, exclusivamente um acontecimento militar, ou seja, feito a partir dos quartéis com um objetivo certo: instaurar uma nova realidade no Brasil de então: a ditadura.
O outro prisma que propus é o do fato. Nós historiadores, ao debruçarmos sobre as fontes do passado que são vestígios dos acontecimentos e buscando interpretá-las, construímos o fato histórico, ou seja, o acontecimento a partir dos seus vestígios, são transformados em fatos da História, pelas mãos dos historiadores. Ou seja, os vestígios de 1964, amplamente analisados e criticados, já foram interpretados e garantem, com absoluta tranquilidade, que o acontecimento/fato histórico ocorrido se caracterizou como um golpe militar e deu início há 21 anos de ditadura, que durou até 1985.
Ou seja, tanto do ponto de vista do acontecimento (senso comum), quanto do ponto de vista do fato histórico (senso historiográfico), não resta dúvida de que 1964 um golpe militar ocorreu no país. Em que pese parte da sociedade civil da época ter apoiado o golpe, ainda assim foi um golpe, e que mergulhou o país em um ambiente sombrio de perseguições, torturas, mortes, falta de liberdades civis, políticas de pensamento.
Mas por que essa discussão sobre se foi golpe ou não foi ressuscitada? Por que o atual presidente ressuscitou esse debate? O que está por trás dessa polêmica instaurada? A princípio, creio que mais do que uma polêmica, essa discussão se insere num debate ainda maior: o da importância da História para o campo da política. Por que? Porque penso que o atual presidente carece substancialmente de legitimidade, tanto política e social, quanto do seu próprio grupo, no caso, os militares. E nesse jogo, ele considera a legitimidade entre seus pares a principal.
Ao defender que em 1964 não aconteceu um golpe, o presidente busca reescrever a História. De forma perigosa, ele despreza a verdade dos acontecimentos e o entendimento historiográfico em torno desses acontecimentos para se legitimar no cargo, com um principal objetivo que é manter apoio dos militares. Ele próprio dias atrás afirmou que “só há democracia porque os militares assim o querem”. Ou seja, num ambiente democrático em que os governos buscam se legitimar através do apoio popular e do diálogo com o parlamento, no caso brasileiro, nesse momento, o mandatário busca se legitimar através dos setores militares de onde saiu, mesmo que ao custo da supressão dos fatos históricos, caso de negar o golpe.
Ao negar o golpe de 1964, numa tentativa perigosa de reescrever a história do país, o presidente optou por um caminho perigoso: o de se legitimar por intermédio de inverdades, desprezando a história do seu próprio país, o conhecimento acadêmico e o entendimento largamente estabelecido sobre as décadas passadas do Brasil, alicerçada em farta documentação. Penso que o quadro apenas evidencia o quanto o atual governo encontra-se perdido em sua função de governar. Literalmente sem direção. Carecendo de rumo, opta por embarcar em polêmicas que visam apenas, creio, desviar a atenção de sua incompetência gerencial em matéria de país.
Finalmente, como um dos objetos da História é o entendimento do passado a partir da interpretação e reinterpretação do mesmo para o entendimento do momento presente, fico com a reflexão do historiador francês Paul Veyne, para quem a História busca compreender os acontecimentos por suas causas ou fins. Que saibamos interpretar o que está por trás das atuais tentativas de se reescrever a História, identificando como defende Veyne, as causas e os fins dessas tentativas, sob pena de inconscientemente ou não, legitimarmos discursos e, em último caso, repetirmos os erros do passado.
RAYLINN BARROS DA SILVA
É doutorando e mestre em História pela Universidade Federal de Goiás
raylinn_barros@hotmail.com