Esse tema já foi esmiuçado aqui e em todos os quadrantes imagináveis por centenas de operadores do direito, entretanto, não custa nada trazer para reflexão novamente esses dois institutos que, diga se de passagem, se entrelaçam, mas são diferentes.
Desde os mais longínquos tempos, os conceitos de posse e propriedade povoam nossas cabeças, sempre fizeram parte do nosso cotidiano, sendo concebidos, muitas vezes como um único instituto, indissolúvel, o que é um engano.
A posse e a propriedade nos remetem ao verbo “ter”, sendo um dos pilares sociais, fazendo com que tenha atenção e proteção de nosso sistema jurídico.
Quando a pessoa diz que tem determinado bem, e que dele faz o que der na telha, ideia arraigada em nossa cultura, serve de parâmetro para compreensão da distinção entre posse e propriedade em nosso ordenamento jurídico, deixando aflorar não só os pontos de convergências, mas também as diferenças.
Desde o direito romano, o instituto da posse é um dos temas mais conturbado no mundo jurídico. Inúmeras foram e são as teorias acerca do assunto, buscando reconhecer a posse como mero fato jurídico ou propriedade como um direito.
E pelo que vimos, lemos e temos à disposição, se depreende que sempre foi consenso que a posse é uma exteriorização do direito de propriedade. E hoje é assim que a posse está regulada em nosso sistema jurídico, e por aí pode se ver que é coisa distinta da propriedade, também regulada.
O legislador brasileiro não conceituou nem posse nem propriedade, deixando para os doutrinadores essa espinhosa incumbência, entretanto, quanto a posse, destacou o conteúdo dela como o exercício, pleno o não, de algum dos poderes da propriedade. Para efeito de compreensão é bom passar o olho no que diz o artigo 1.196 do Código Civil que “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Podemos entender como posse um poder de fato sobre um bem: – uso, gozo e fruição -, em razão de uma relação de direito real ou de direito pessoal. Direito real se dá, por exemplo, quando o proprietário de um bem é também seu possuidor, e o direito pessoal, exemplificando, se dá no caso dos locatários, que possui um bem de propriedade do locador, é a famosa posse indireta.
Usar, gozar e fruir da posse ou propriedade são os atributos inerentes à utilização da coisa do modo mais amplo possível, seja diretamente, no caso de um morador, seja indiretamente, no caso de um locador, por exemplo.
Mas é bom que se diga que a posse sobre determinado bem também pode acontecer mesmo que não haja qualquer vínculo jurídico com seu legítimo proprietário, como é o caso da posse de imóveis sem justo título, por exemplo a posse em terras devolutas.
O justo título, como é de conhecimento de quem milita na esfera do direito agrário, é aquele que, muito embora não seja hábil para transferir a propriedade ou garantir a posse, é suficiente para demonstrar que o sujeito acreditava que a coisa era sua ou que a ocupava de forma legítima, como nos contratos de compra e venda de posse de imóveis rurais.
Independentemente da natureza jurídica que se pretende atribuir à posse, se é de direito real ou pessoal, ou se é um fato jurídico, a lei brasileira protege o possuidor, garantindo-lhe o direito de ser mantido na posse, de reavê-lo ou de impedir sua violação em caso de ameaça iminente; e com isso desaguamos nas ações possessórias: – reintegração de posse, manutenção de posse e interdito proibitório, conforme pontua o artigo 1.210 do Código Civil. A posse também tem outros efeitos, notadamente os que podem ser extraídos dos artigos 1.20 a 1.222 do Código Civil.
Infelizmente o sistema jurídico brasileiro não faculta o possuidor registrar a posse, o que impede o sonho de qualquer posseiro: – ver sua posse oponível contra todos -, cunhada na expressão latina erga omnes, entretanto, protege de qualquer ataque ou iminência de ataque, o que é muito bom, dá estabilidade jurídica, pacifica os corações, abranda os ânimos.
Diferentemente da propriedade, a lei não exige qualquer formalidade para a aquisição e transmissão da posse. Aí estamos diante de outra diferença dos institutos.
A posse é adquirida a partir do momento que possa ser exercido qualquer poder inerente a ela, nas amarras do artigo 1.204 do Código Civil, podendo ser transmitida a terceiros com as mesmas características que foi adquirida.
Vários são os tipos de posse, variando conforme os aspectos jurídicos subjetivos, posse de boa-fé ou má-fé, ou conforme os aspectos jurídicos objetivos, como o contrato na transmissão hereditária, um dos justos títulos
Noutro giro, a propriedade privada, como o contrato, está inserida no núcleo do nosso ordenamento jurídico, e isso vem desde o Código Civil de 1916, garantido o proprietário usar, gozar e dispor de seus bens de forma absoluta possível. O mesmo dispositivo garantia o direito de reaver os bens do poder de quem quer que, injustamente, os possuísse.
A Constituição Federal de 1988 foi pedra de toque para a atual concepção formada pelo Código Civil de 2002 acerca da propriedade. A grande contribuição da Constituição de 1988 não foi só estabelecer a propriedade privada, mas também o atendimento a sua função social. Não adianta ter imóvel sem que esteja cumprindo sua função social, pois a norma, inclusive a constitucional, determina que seja cumprida a função social.
Em outra oportunidade falaremos das várias espécies de propriedade e a sua importância para o desenvolvimento social, para a solidificação de uma República em sua verdadeira acepção do termo.
Jurisprudência selecionada. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. POSSE ANTERIOR. ESBULHO E SUA DATA. PERDA DA POSSE. REQUISITOS NÃO COMPROVADOS. DISCUSSÃO DA POSSE COM BASE EM PROPRIEDADE. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. 1) Para o deferimento da proteção possessória, é ônus do autor a comprovação da posse anterior, do esbulho e da data em que ocorrido, nos termos do artigo 561 do CPC. Inexistente prova dos requisitos, impõe-se a improcedência do pedido e, de consequência, a manutenção da sentença tal como lançada 2) Em razão das ações possessórias terem por finalidade a defesa da posse, não lhe é permitida a discussão referente à propriedade, motivo pelo qual a ação reintegratória ora ajuizada não é o meio hábil para resguardar o direito dos proprietários/apelantes de reaver o seu pretenso bem. APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA. (TJ-GO – APL: 01777107520148090006, Relator: Wilson Safatle Faiad, Data de Julgamento: 05/09/2018, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 05/09/2018)
Corroborando o que fora dito ao longo do texto, o Julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, mostra que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio o pedido de reintegração de posse com base no documento de propriedade. São duas coisas distintas, não há que confundir posse e propriedade, posto aquela ser um dos atributos da propriedade, como bem salienta o artigo 1.196 do Código Civil brasileiro. A lei é sábia, cara pálida!
MARCELO BELARMINO
É advogado, jornalista e técnico agrícola. Atua nos diversos ramos do direito, tendo foco central o direito Agrário o Imobiliário. Também escreve para o portal www.fazendasnaweb.com.br.
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