O tio gordo tava de brincadeira, né? Perguntar se alcançava? Sacanagem! Os parça apontaram o dedo para mim e gargalharam. Eu era o menor da galera, mas o constrangimento de colocar minha altura em xeque foi maldade. Inclusive, quando saí de casa três dias antes para ir ao plano diretor, mãe elogiou meu crescimento. “Tu tá um hominho, moleque!”, falou ela. Sentia-me enorme quando atravessei a lama trazida pela chuva que nessa época substitui a poeira na nossa quadra invisível e cheguei ao asfalto dos setores visíveis. Agora vinha esse balofo insinuar que eu não tinha tamanho para alcançar aquela porra! Filho da puta!
Ele se desculpou, pelo menos isso, e a molecada aliviou para mim porque nossa preocupação mesmo era entender o propósito daquele maluco. Um gigante que parecia ainda maior pelo impressionante volume de bochechas, tronco e membros. Pela lânguida luz do poste que chegava sob a marquise em que passávamos a noite e por estar enfiado numa boina preta, não conseguimos ver seu rosto direito. Falava que era só uma brincadeira. Nada demais. Iríamos à 41, onde na época ainda moravam os bacanas poderosos, e agiríamos sincronizadamente. Só isso. Cinquentão para cada um dos sete. Parecia fácil, mesmo que não entendêssemos o objetivo.
Os parça confabularam. Brincar com bacanas poderosos naqueles dias não parecia uma boa ideia. Sabíamos que andavam muito agitados depois que uns carros pretos enormes de polícia, homens com balaclavas e armas imensamente amedrontadoras cercaram as casas de alguns e prédios da Praça dos Girassóis. Vimos na TV do restaurante do Tião enquanto aguardávamos a madame que nos prometera coxinhas.
O tio gordo assegurou que não seria problema. Primeiro, insistiu, era só uma brincadeira sem importância, depois nem seríamos vistos. Só executaríamos o serviço e correríamos para o ponto de resgate.
Cabeça de Prego ponderou na roda que já recebêramos propostas piores, de traficantes e também de degenerados e degeneradas de todo tipo. Balançamos a cabeça afirmativamente. Zé Cão confirmou com um “nojentos!” e arremessou uma cusparada que pregaria no tênis fino do tio gordo se ele não tivesse recolhido o pé rapidamente. Toim do Miguel coçou a cabeça e ponderou no concílio: “Cinquentão mole, mole!” Geraldinho Marrento concordou, contudo, exigiu a grana adiantada. Foi o único momento em que a criatura titânica mostrou irritação. Inflou o peito colossal, parecendo ainda maior e mais assustador, e, com o dedo fuzilando o ousado, avisou que não daria calote mas que muito menos seria roubado por uns moleques de rua. Colocados no lugar que sempre nos cabia, topamos, por fim, mesmo sem adiantamento.
Tio gordo ficou de nos pegar às cinco e meia no ponto de ônibus a poucos metros de onde passamos a noite. Foi pontual. Encostou a enorme caminhonete na parada do coletivo ainda vazia àquela hora. Subimos na carroceria e rumamos para a 41, como já disse, até então a quadra dos bacanas mais poderosos do Tocantins. Anos depois, Palmas ganhou prédios imensos, e eles se mudaram para coberturas na Orla da Graciosa, bem mais longe daqueles que sempre esconderam distantes do plano diretor.
Descemos à entrada da quadra e cada um seguiu para seu posto. Só esperar o sinal. O meu alvo era uma casa descomunal, nunca havia visto uma daquele tamanho. À entrada, a guarita como a da agência bancária do centro, de onde o segurança mal-encarado nos espantava só com o olhar medonho. Não diferente do que assomou naquele instante pelo retângulo no alto da proteção de concreto. Ao perceber que minha presença foi notada, passei direto. Mas me preocupei em avistar a porta. Constatei que realmente minha altura não seria problema, ao contrário do que insinuou tio gordo despertando a troça dos parça. Defini o local de espera. Vi os meninos se postando, todos na mesma rua. Zé Cão me fez o “ok”, Geraldinho Marrento, mais à frente, sinalizou a seu estilo: segurou na região pudica e chacoalhou. Assistindo a cena do outro lado da rua, rente a um muro altíssimo, Toim do Miguel se dobrou numa silente gaitada. Os outros estavam bem mais adiante, também prontos para agir.
Queria ser eficiente no cumprimento no trabalho. Foi o que me levou a fazer uma inspeção quase agachado para fugir daquele olhar sinistro. Precisava me certificar de que alcançaria mesmo a meta assim que a operação fosse deflagrada. Deslisei em direção à entrada da mansão confiante de que passava despercebido do segurança. Os olhos sombrios não apareceram no retângulo da guarita, o que me tranquilizou. Vi o alvo a poucos metros e segui percorrendo de cócoras o resto do trajeto. Cheguei à porta e fui subindo lentamente, grudado nela feito lagartixa. Uma mão bem acima da cabeça, o indicador já na posição, aproximava-me do ponto de ação quando ouvi o grito “o que você quer aqui, moleque?” Assustado, virei a pirueta invejada pelos parça e vazei para longe, deixando resmungos atrás.
Arrependi-me da aventura. Desnecessária. Estava muito claro que alcançaria. Pra quê o risco? A questão agora é que o vigia estaria atento a qualquer movimento meu. Assim, julguei por bem aguardar bem quietinho o momento de agir.
Não fui o único que resolveu inspecionar as linhas inimigas. Entrincheirado atrás de um muro de clusias, ouvi os sussurros de outro guarda mais à distância. Através da folhagem, entrevi Zé Cão driblando o homem de azul claro e se enfiando no terreno baldio ao lado da mansão. O segurança voltou a passos secos e rápidos a seu posto.
Fez-se minutos de um silêncio nervoso e esperávamos o sinal a qualquer momento. Ainda me intrigava o objetivo do tio gordo. Lembrei-me que uma daquelas casas fora a que vimos na TV do restaurante do Tião, cercada pelos enormes carros pretos e homens fortes sob balaclava empunhando armas de filme. Por que queria que fizéssemos aquilo? Não conseguia entender a motivação. Mas o que importava era o cinquentão. Impossível levantar uma grana fácil dessas no plano diretor num único dia. Tínhamos que ralar muito, fazer caras e bocas as mais variadas para comover a freguesia a ponto de faturar uma esmolinha ridícula. Numa jornada muito produtiva dava uns quinzão. Então, por que cinquenta para algo tão esquisitamente fácil? Enfim, não havia nada ilegal que desgostasse mãe, nem depravação. Qual o problema de embolsar uma grana honesta, ainda que para uma finalidade que não fazíamos ideia qual seria?
Filosofava sobre essas questões quando irrompeu o sinal. O ensurdecedor barulho de sirene vindo da caminhonete fez parecer que dezenas de viaturas policiais invadiam a quadra. Corri para o meu alvo e, de esguelha, percebi um dos nossos atravessando a rua, Zé Cão saindo do terreno baldio e outros de jardins. Na direção oposta, ao final da rua, próximo da saída da quadra, o veículo do tio gordo posicionado para o nosso resgate ainda disparava a saraivada raivosa de sirenes. Alcancei a campainha com facilidade, para minha alegria. Apertei o botão com toda a vontade e a força do indicador, fazendo o som estourar nervosamente no interior da casa como se fosse explodi-la. Segundos pareceram sem fim até o clique na guarita, o andar pressuroso e o resmungo aflito do guarda. Virei em disparada em direção à caminhonete acompanhado na correria por todos os parça, que também já haviam cumprido a missão deixando para trás seguranças atordoados, driblados por vários e lépidos moleques.
Casas alvejadas se iluminaram. Mulheres e crianças em prantos, gritos assustados e desespero de homens.
Eram exatamente seis horas da manhã.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.